Como as velhinhas no casarão de Bouboulina

Fui hoje à 2001 da Paulista. Estava, claro, cheia como não ficava fazia muito tempo. Todo mundo comprando antes que acabe.

Me senti como uma das velhinhas miseráveis da ilha de Creta em Zorba, o Grego, pilhando o que sobrou no casarão após a morte de Bouboulina.

zz zorba

A 2001 está acabando depois de 33 anos. Surgiu, portanto, em 1982. Não posso garantir com toda certeza, mas, se não comecei a frequentar a 2001 em 1982, foi em 1983, 1984 no máximo. Regina e eu sempre pegávamos filmes lá, tanto lançamentos recentes quanto classicões. Muitas vezes eram filmes para vermos no fim de semana com as crianças, ou para elas verem enquanto fazíamos outras coisas.

Me lembro bem que Fernanda e Inês tiveram fase de paixão extremada por A Dança dos Vampiros, de Polanski, de 1967, e por Caçadores da Arca Perdida, de Spielberg, de 1981. Inês ficava passando a fita VHS pra frente e pra trás na sequência em que os nazistas se liquefazem, quando a arca é aberta, já bem perto do fim do filme. Ela e Fernanda morriam de rir daquilo, e viam e reviam uma dúzia de vezes.

A gente tinha comprado um vídeo importado, e feito a conversão para a cor brasileira numa oficina que fazia muito disso, na época em que ainda havia poucos players fabricados aqui. O VCR tinha uma chavinha para mudar de NTSC para PAL-M.

Credo em cruz, que coisa pré-histórica. Impressionante que eu ainda me lembre disso.

Pois é: as fitas VHS de A Dança dos Vampiros e Caçadores da Arca Perdida foram alugadas na 2001, naquele início de anos 80.

***

No velho Jornal da Tarde a gente costumava brincar que sempre que um leitor mais velhinho ligava, dizia ser “um leitor assíduo do Estadão”. Pois podem rir de mim: eu fui um frequentador assíduo, um cliente assíduo da 2001.

Acho que foi em meados dos anos 90 que a 2001 abriu a bela, ampla loja na Avenida Sumaré, a umas seis ou sete quadras da minha casa. Naquela época havia diversas pequenas locadoras em Perdizes, e Mary e eu éramos cliente de uma ou duas, devido à facilidade da vizinhança, mas as abandonamos logo em favor da loja nova da 2001. Era difícil um fim de semana em que não passássemos lá para alugar um ou dois filmes.

Quando adotamos o DVD – em dezembro de 1998 –, a 2001 ainda não tinha o formato novo e que então parecia definitivo. E demorou um pouquinho para adotá-lo. Lembro que Mary e eu achávamos aquilo esquisitíssimo. Comentávamos com os funcionários – eles, é claro, não tinham o que dizer. Descobrimos uma locadora na Heitor Penteado, acho que Première, que começava a ter DVDs, e ficamos clientes deles – mas, na prática, alternávamos DVDs alugados na Première com VHS alugados na 2001, que sempre teve uma variedade maior que qualquer outra loja.

Quando, enfim, após alguns meses de hesitação, a loja da Sumaré – assim como as demais da rede, é claro – adotou o DVD, adotou pra valer. O catálogo foi crescendo rapidissimamente, tanto para locação quanto para venda. Nunca fui de colecionar VHS, aquela coisa um tanto frágil, mas virei um colecionador fanático de DVDs.

Criei um doc, DVDs.doc, em que anotava os títulos comprados, o lugar da compra, o preço, a data, e o número de entrada de cada um na coleção. Até 2010, anotei 1101 DVDs comprados. A partir daí parei de anotar o número, mas devo ter comprado no mínimo, no mínimo, mais uns 500. Desses 1.600 DVDs que – muito por baixo – tenho em casa, seguramente uns 1.200, sei lá (é puro chute, claro), devem ter sido comprados na 2001 da Sumaré.

Além da variedade imensa de títulos, da beleza de acervo, a 2001 da Sumaré ainda tinha um atrativo extra: me obrigava a fazer as caminhadas de ida e volta, morro abaixo e morro acima, seis ou sete quadras para ir, seis ou sete quadras pra voltar. Cinema também era esporte.

zz2001Quando a gerente me contou que a rede iria comemorar 30 anos com uma exposiçãozinha de coisas da sua história, me ofereci para emprestar, ou dar, uma relação dos filmes do acervo lá nos primórdios, que eu tinha pego na loja da Paulista, impresso ainda no tempo das matriciais, naquele papel com os furinhos dos dois lados. Autêntico ítem de memorabilia.

Memorabilia: guardei até recentemente toda a coleção da revista mensal que a 2001 publicava, com bons textos sobre os lançamentos mais recentes – filmes novos ou antigos. Tinha desde o número 1. Há alguns meses, na eterna luta de tentar sobreviver num lugar que tem mais suportes físicos de todas as espécies do que cabe, botei fora toda a coleção. Agora sinto falta – coisa, aliás, acontece toda vez que boto fora algum suporte físico.

Não me lembro quando a loja da Sumaré foi fechada. Provavelmente foi em 2013, dois anos atrás. Me lembro que os funcionários comentavam sobre o preço do aluguel da loja, alto demais. O imóvel jamais voltou a ser alugado. Está lá abandonado, pixado, às traças.

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Diversos órfãos da 2001 da Sumaré – Mary e eu entre eles, é claro –adotaram, então, a Top Cine, numa ruazinha chamada Plínio de Moraes, quase na esquina de Alfonso Bovero. Era uma locadora bem menor que a loja da Sumaré, é claro, mas tinha grande variedade, muito filme europeu, asiático, latino-americano, muitos clássicos, muitos títulos dos grandes autores, e funcionários bem informados, assim como os da 2001.

Foi uma alegria ter encontrado a Top Cine…

… até que ela também fechou. Fiz uma oração fúnebre aqui por ela, como já fiz diversas outras quando as lojas de suporte físico vão desaparecendo.

O imóvel que a Top Cine ocupava também está vazio, com placa de aluga-se pendurada. Há mais imóveis com placa de aluga-se, no Brasil de hoje, do que sem.

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Acho que entrei na 2001 da Paulista 726 pela primeira  depois de muitos anos num dos domingos do Fora Dilma, Fora PT. O segundo, o de 12 de abril, acho. Eu já era um sem-locadora havia meses, e estava absolutamente carente. Então parei por um momento de gritar Fora Dilma, Fora PT, e entrei na belíssima loja no térreo do prédio Quinta Avenida.

É como muçulmano chegar a Meca, católico entrar na Praça São Pedro.

A partir daí, retomei o hábito de ir sempre à 2001, para alugar e para comprar. zzzz2001 prateleira
Não tinha mais a coisa gostosa de ir e voltar a pé, mas não era longe demais, e tinha a facilidade de pegar ônibus + metrô e pronto.

Infelizmente, nunca tinha fila na hora de levar os DVDs escolhidos ao caixa. Nunca tinha mais de três ou quatro clientes na loja além de mim, nem em dia útil, nem em final de semana.

E sábado agora, 19, veio o aviso por e-mail. As duas últimas lojas que permaneciam abertas, a da Paulista e a de Pinheiros, vão fechar. Chegaram a ser sete, no auge. Agora, sem loja física, a empresa passará a apenas vender filmes novos pela internet.

Parece que as duas lojas estiveram bastante cheias no sábado e no domingo. Hoje a da Paulista estava cheia. Mas muito cheia. Deveriam estar lá, na hora em que cheguei, por volta das 6 da tarde, umas 50 pessoas.

Comecei a olhar nas prateleiras de cinema europeu.

O que antes era super organizado, em rigorosa ordem alfabética, depois dos filmes dos autores mais famosos, estava já bagunçado, torto, com muita coisa fora de ordem, se misturando com os das prateleiras ao lado, os clássicos.

Sim, eu me senti como uma das velhinhas miseráveis da ilha de Creta em “Zorba, o Grego”, pilhando o que sobrou no casarão após a morte de Bouboulina.

Saí de lá carregando parte da riqueza da velhinha morta.

Tristeza.

Nem sei dizer o que me deixou mais triste – se o incêndio que hoje mesmo arrasou com o Museu da Língua Portuguesa e parte da Estação da Luz, ou se o fim da 2001.

21 de dezembro de 2015

2 Comentários para “Como as velhinhas no casarão de Bouboulina”

  1. Servaz, concorrendo com Star Wars, lançamento em São Paulo: Odisseia foi para o espaço.
    Infame!Desculpe.
    Mas me proporcionou aprazível leitura.

  2. Excelente Sérgio, você é insuperável quando é você.
    Valdir tem razão sua odisséia à 2001 não faz mais sentido. Como vai fazer para acomodar a s tralhas que pilhou ante a falta dos suportes físicos. Ainda bem que a Mary é compreensiva com suas quinquilharias, fosse a mulher do Valdir cê tava lascado.

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