Quando os Repórteres Usavam Revólveres (4)

Os tacos do piso que cobriam as salas, na Delegacia de Homicídios, estalavam à medida que se andava neles. Muitos estavam soltos. Na sala de Maurício Castilho, o barulhinho irritante não cessava. O delegado andava de um lado para o outro.

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– Não é muito fino um bandidinho da Boca do Lixo usar um veneno sofisticado para dar cabo de uma mundana? – perguntava aos seus investigadores. Em cima da mesa estava o jornal com a matéria de Garoto. Maurício também fora furado.

Um fiapo de informação começara a correr no submundo, pela transmissão sem fio do boca-a-boca, na madrugada seguinte ao assassinato. Continha um nome, Miro. E uma qualificação, mata sem deixar vestígios. O boato passou ileso pelos ouvidos dos informantes da polícia; ou, o que era mais provável, estes não haviam acreditado no que diziam. Marion impressionou-se com aquilo. Resolveu contar a Rago.

Castilho lera a noticia nas Folhas, logo cedo. Inquietara-se um pouco. Mais tarde, recebera um telefonema do Instituto Médico Legal.

– Temos a causa da morte, delegado – disse o legista. – Sua cliente foi envenenada por uma droga que ainda não conseguimos identificar inteiramente, mas é eficiente e rápida. Dissipara-se no organismo, sem deixar vestígios. Encontramos alguns traços nas vísceras.

– Não me ajuda muito… não há outros detalhes?

– A melhor possibilidade é que tenha sido colocada em uma bebida. Um drink, um café.

Em pouco tempo, o carro preto e branco, escrito na porta Delegacia de Homicídios, partiu para a Boca do Lixo. O território que se espalhava pelas ruas Aurora, Timbiras, Andradas, Protestantes, não longe da Estação da Luz, mostrava a sua face mais visível, a prostituição nas calçadas.

Os policiais vasculharam as espeluncas do lugar, os bares e hotéis, as bocas e quebradas, interrogaram os suspeitos de sempre, mas de nenhuma boca saiu o nome Miro. Apelaram para os colegas da Delegacia de Costumes, com sua clientela de rufiões e proxenetas. Estes nunca haviam esbarrado em Miro algum.

O nome, no entanto, deixara a tiragem de Costumes intrigada. Miro? Resolveram eles mesmo passar um pente fino na região flagelada. Em 40 minutos, o policial Turíbio pisava no tapete de sisal com os dizeres “Limpe os Pés”, à entrada do hotel Saint-Tropez. Sabia o que veria sobre o balcão da recepção. De fato, lá estava o livro com a foto de uma mulher nua, um recorte de revista colado na capa. Luz del Fuego, a vedete naturalista, sorria, com uma cobra enrolada no corpo.

O porteiro estendeu o livro de hóspedes com a pelada para Turíbio, antes mesmo de este pedir. O policial devolveu-o, fechado.

– Se houver mais gente nos quartos do que está registrado aí você vai em cana.

Reconsiderou sua decisão. Pegou Luz del Fuego de volta e a colocou sob o braço. Então, subiu a escada mal iluminada. Chegou ao corredor ainda mais escuro, embora fosse dia. Um cheiro agridoce indefinido pairava no ar. Bateu na primeira porta:

– Polícia!

zzvaldirsanchesEm poucos segundos a porta se abriu, puxada por uma mulher de talvez 30 anos, inteiramente nua.

– O que você quer, cara? Não vê que estou trabalhando?

Na cama, um homem maduro se escondia sob um lençol que um dia fora branco, mantendo apenas a cabeça para fora.

– Documentos – reagiu o policial.

– Vá pedir para sua mãe! – respondeu a pelada. E bateu a porta.

Turíbio resignou-se e voltou a caminhar. Uma cena de gritos e escândalo alertaria todo o hotel. Havia pelo menos seis portas no corredor. Quatro andares. Decidiu jogar ao acaso. Bateu em algumas, pulou outras. Conferiu o nome dos homens, fez perguntas às mulheres. No último quarto, o nome na carteira de identidade o interessou vivamente. Waldomiro. Apelido, Miro? Era um tipo pequeno, de rosto encovado. Em dois minutos de conversa, percebeu que o sujeito seria incapaz de matar uma mosca com inseticida.

Na quinta porta do segundo andar, no terceiro hotel em que buscava, um fato o surpreendeu. Quem abriu a porta foi um homem de cuecas, com um charuto na boca, mal-humorado. Antes que o tira dos Costumes dissesse qualquer coisa, reclamou:

– Porra, Turíbio, não sacaneia.

A cueca não comprometia a imponência de Big King, o rei da Boca do Lixo. Conhecido até dos postes, com frequência o detinham, por suspeitas que iam da exploração de mulheres ao tráfico miúdo de drogas, quando não agressão e tentativa de homicídio. Mas nunca parava preso.

Turíbio olhou para dentro do quarto. Não havia mulher a vista. Mas que havia mulher, havia, porque um mimoso sutiã cor de rosa enfeitava o assoalho carcomido do aposento.

O entrevero entre o policial, que queria revistar o lugar, e o outro, que exigia mandado de busca, durou dez minutos. Terminou quando uma loirinha oxigenada, muito jovem, cansou-se de esperar no banheiro e apareceu com apenas uma combinação transparente sobre o corpo, mastigando um bombom.

– Servido? – perguntou a Turíbio, mostrando uma caixa de Sonho de Valsa.

Os dois homens acabaram sentados na cama, com a porta fechada, para negociar. Entenderam-se no seguinte. O policial não perguntaria a idade da moça, que aparentava no máximo quinze anos; e King se disporia a um esforço de memória para tentar situar em algum ponto da Boca alguém chamado Miro.

– Miro… Miro… está difícil.

– Um cara fechado, frio… É um matador.

Não houve jeito. A lorinha já havia se entupido de bombons, quando King definiu:

– Não há, em toda a Boca do Lixo, ninguém chamado Miro. Pelo menos, ninguém da bandidagem.

Turíbio passou ao outro um cartão com seu telefone pessoal. Se soubesse de alguma coisa… Fechou a porta e desceu as escadas. Já estava na calçada, reunido com seus colegas, quando o Rei da Boca o chamou, da janela do quarto.

– Olha, tem um japa num restaurante japonês aí da Timbiras. Só que chama Miúro e é cozinheiro. Se você quiser tentar, boa sorte.

O episódio e a cara que Turíbio fez, ao ouvir a informação gritada da janela – um matador cozinheiro – se espalharia como piada na delegacia de Costumes, e daí para várias áreas da polícia e anexos. O pente fino, por sua vez, apresentaria magro resultado. Detenção de dois recepcionistas de hotel, por falta do registro de hóspedes. E de seis pobres coitados, “para averiguação.” Todos, logo liberados.

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No meio da noite, um homem entrou num restaurante pequeno e com meia dúzia de mesas; escolheu uma delas, e puxou a cadeira. Sentou-se com ar de quem não tem pressa. Do teto pendiam algumas bandeirolas vermelhas, e um globo de papel branco, com caracteres japoneses. Isso era tudo. O cardápio estava sobre a mesa. O cliente examinou-o, demonstrando interesse.

– Comida brasileira e oriental, o senhor vai gostar – disse o garçom, que se aproximara, solícito.

– Muito interessante – respondeu Rago.

Da mesa que escolhera, podia ver uma parte da cozinha. Lá estava o cozinheiro, aplicado em seu trabalho. O cliente abriu um sorriso.

– Ah, e o chef é japonês.

O garçom achou engraçado chamar o outro de chefe.

– É o senhor Miúro, faz muito boa comida.

O maior número dos pratos do cardápio era o trivial da cozinha brasileira. Os do Japão não somavam mais que cinco. No entanto, esse inusitado freguês demonstrava desconhecer a culinária japonesa, e não parava com suas perguntas. O garçom achou melhor chamar o cozinheiro. O senhor Miúro veio, fez algumas vênias e deu rápidas explicações. Era um homem sorridente, mas um detalhe não escapou a Rago: sorria só com os lábios. Os olhos eram gelados.

O que tenho na mão? – pensava o repórter, ao deixar o restaurante, depois de uma refeição sofrível. Esse Miúro o impressionara. Mas o homem buscado naquele mesma porção da cidade, a Boca do Lixo, atendia por Miro. Ninguém garantia que fosse japonês, ou descendente.

Só havia uma coisa a fazer. Conseguiu um táxi e mandou tocar para o Guanabara Danças. Não gostaria de encontrar com Garoto, e não estava feliz com Marion. Mas a entendia bem. Jogava todas as fichas em um romance que poderia mudá-la das noites intermináveis do dancing, e de uma quitinete barata, para um apartamento bem mobiliado.

Para apressar as coisas, saiu dançando com a moça.

– Garoto é legal, mas muito inexperiente. Aliás, em tudo. Você não sabe como ele é na ca…

Antes que entrasse em detalhes, Rago cortou.

– Quem é esse Miro que você passou para ele?

– Ah, desculpe Rago. É que eu…

– Deixa para lá.

– Não tem Miro nenhum. Eu falei Miúro.

O repórter e a táxi-girl chacoalhavam-se em um samba.

– Quem é esse, então?

– Ninguém explica direito. Uma menina que trabalha aqui falou para outra, que falou para mais uma… alastrou. O sujeito parece que já veio com bronca lá da terra dele. Envenenamento… Agora, nestes dias, recebeu uma bolada. Estão falando que é pagamento pela morte daquela bacana no treme-treme.

Num deserto de pistas, era uma informação preciosa. Rago desceu para a avenida e viu que o jipe da reportagem, chamado por telefone, o esperava. Entrou, e mandou seguir para a redação. Tinha pressa, a noite avançava. Queria pôr a notícia na primeira rodada. Então… Sentiu que alguma coisa o incomodava. Sim, estava em um dilema. Se saísse com a notícia sobre Miúro, e ele fosse mesmo o assassino, sumiria do mapa. Se segurasse a notícia, e avisasse o delegado Castilho, ficaria na incômoda posição de informante da polícia. O jipe corria pela cidade. Bem, ponderou o repórter, roubar fotos de mortos é uma coisa. Facilitar a vida de um assassino é bem outra.

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Sob a luz da manhã, o Restaurante Sol do Oriente mostrava bem o que era. O desenho de um dragão na porta não atenuava seu aspecto de grande modéstia. Freguesia devia ter, pois as casas japonesas costumavam ser pequenas e singelas. E seguramente era o único, nesta parte da cidade.

Um grupo de homens ansiosos se espalhou pela calçada. Era cedo, o comércio dormitava. Bateu à porta do restaurante. No andar de cima, alguém abriu uma quase imperceptível fresta na janela. A porta permaneceu fechada.

– Vou dar três minutos – gritou Castilho, olhando para a fresta. – Se não abrirem, arrombamos.

Um dos homens estranhou.

– Mas doutor, sem mandado de busca…

O delegado desconsiderou a pergunta. Depois, resolveu ser irônico.

– Alguém aí dentro pode estar passando mal, ou tentou suicídio. Precisamos salvá-lo.

– Ah, bom.

Arrombaram a porta. A escada estava em um canto do salão. Subiram. Deram em uma sala cheia de enlatados e pacotes de alimentos. Havia uma prateleira, com frascos de condimentos. Como a sala, as outras duas peças – quarto e banheiro – estavam desertas. Castilho notou que uma pessoa magra passaria facilmente pelo vitrô do banheiro. Por ali, não teria dificuldade para alcançar o telhado da casa vizinha. Não havia dúvidas: o suspeito se pusera ao relento.

O garçom, o mesmo que atendera Rago, chegou poucos minutos depois. Estanhou a porta do restaurante aberta. Mas não teve tempo para conjecturas. Cercado e levado para o salão, contra-atacou: ofereceu um café, cortesia da casa. Mas acabou servindo o que interessava. Mostrou uma caixa de papelão, que antes embalava extrato de tomate. Agora continha os papéis da firma, e o nome do arrendatário: Miúro Yamaki.

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O perito Jonathan atravessou o salão e subiu as escadas. Estava contente por ir a um lugar onde não havia um cadáver. Assim que o viu chegar, Castilho apontou uma prateleira de madeira nua, pregada na parede. Nela, dispunham-se frascos de pimenta, curry, estragão, orégano, folhas e pós de cor e tamanho variados. Jonathan não exibiu nenhuma técnica especial, em sua perícia. Foi abrindo tampas e cheirando conteúdos.

Castilho tinha os olhos postos nele. Esperava que, em uma das suas investidas olfativas, mudasse a expressão de colegial aplicado. Uma careta, um esgar, qualquer coisa que indicasse a descoberta de uma substância suspeita. Mas Jonathan chegou ao último frasco e voltou-se para o delegado com uma beatitude enervante:

– Nada de anormal, é tudo tempero mesmo.

No armário do banheiro havia um tubinho com pequenas pastilhas brancas. Castilho animou-se.

– Veja isso, não tem rótulo.

Deixou escapar um palavrão ao ver o perito colocar uma na boca e mastigar.

– Homeopatia.

Onde estaria o misterioso veneno que – só podia ser isso – Miúro trouxera do Japão? Se não o achassem, a teoria que o delegado elaborara aplicadamente poderia, ela sim, virar pó. E o japonês ser mesmo um pacato cozinheiro – que fugira por puro susto. No fim de uma hora de buscas, não havia restado nada intacto, no restaurante e no apartamento. Não se chegara a absolutamente nada. No quarto do suspeito, um dos tiras pegou a espada de samurai pendurada na parede e começou a fazer graça:

– Miúra derrotou polícia, polícia faz harakiri.

O delegado, encostado no batente da porta, esforçou-se para rir, mas seus lábios se recusaram. O tira iniciava outra pantomima, no momento em que Castilho descolou-se do batente e praticamente pulou sobre o subordinado.

– Dá isso aqui.

Forçou o cabo da espada uma vez, duas… Nada aconteceu. Estupidamente, começou a bater com o nó dos dedos no cabo, para comprovar sua suspeita de que era oco. Já estava pensando em pedir que conseguissem um martelo, quando, pondo muita força nas mãos, conseguiu algo que, apesar de tudo, o deixou admirado. O cabo era realmente oco, visto que a parte que o fechava deslocou-se e foi parar no chão. Então virou a espada e vários minúsculos pacotinhos caíram em suas mãos. Voltou-se para Jonathan, triunfante:

– Quer experimentar um destes, doutor?

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Venâncio redigia uma nota sobre um caso corriqueiro, batendo forte nas teclas. “O 5º DP apreendeu três quilos de maconha com Damiano Augusto (32 anos, casado, Avenida da Liberdade, 250), ontem à tarde, na Rua dos Gusmões. A erva estava sendo passada para uma decaída de nome Mora. O causídico Alberto Mourão compareceu ao DP e negou que o indigitado estivesse traficando a diamba.”

Era uma tarde pobre de notícias. Fred Astaire estava pendurado no telefone. Fazia a ronda das delegacias. Colisão sem feridos na Frei Caneca. Princípio de incêndio em um alojamento do Glicério. Flagrante de vadiagem… Fred Astaire era um dos mais antigos repórteres da sala de imprensa, mas ninguém ligava muito para ele. Pequeno, encolhido dentro de um surrado terno marrom, vivia do cotidiano de pequenas notas, fosse qual fosse a dimensão da notícia. Com frequência chegava ao local dos fatos depois de tudo terminado. Seu apelido vinha daí. “Sempre dança”, diziam os colegas.

Fred trabalhava para um pequeno jornal, o Expresso da Noite. No décimo telefonema topou com algo. Um homem se jogara sobre os trilhos da Central do Brasil, na frente de um trem. Suicídio, os colegas torceram o nariz. Além disso, o caso fora na Penha, aquele fim de mundo. Até hoje não se sabe o que levou o pequeno Fred a apostar nele. O fato é que terminou a ronda das delegacias, pegou o guarda-chuva e despediu-se:

– Senhores, até mais. Vou à Penha.

Foi de bonde, para economizar o táxi. Chegou tarde e dançou. O tráfego dos trens fora restabelecido. Nada mais havia para ver no lugar onde o infeliz morrera. Uma rádio patrulha levou o repórter retardatário à delegacia do bairro. O delegado recebeu-o com festa. Conhecia o folclórico Fred desde que era estudante de direito e fizera um trabalho na Central de Polícia. Convidou-o a acompanhar a diligência que empreenderia. Fred subiu no carro da polícia, com o guarda-chuva embaixo do braço. Foram diretamente a uma casa singela, de paredes brancas, com uma placa na parede: “Costureira”.

A porta se abriu, mal o delegado pôs os pés no calçamento. Uma mulher de aparência sofrida o recebeu:

– A notícia corre, doutor. Já sei de tudo.

– O trem…

– Encontrou o fim que merecia.

O caso da mulher do vestido azul, assassinada com três tiros, numa viela da Penha, estava esclarecido. Desfecho de uma tragédia de amor. Dentro da casa, em um retrato na parede, estava o mesmo rosto da foto três por quatro – o boneco – que Rago roubara da bolsa da infeliz.

– Quem é este? – perguntou a mãe da morta, ao ver o homenzinho estranho entrar junto com o delegado.

– Um grande repórter da sala de imprensa da Central de Polícia.

Ela o mediu por alguns segundos, e disse:

– Sente-se, vou contar-lhe tudo.

O suicida chamava-se Olegário de Souza. Na infância, frequentava a casa de seu melhor amigo, Cláudio Amaro. Na casa vivia também Cecília, irmã de Cláudio. Na adolescência, as coisas se complicaram. A menina crescera e não conseguia deixar de pensar em Olegário. Só não podia entender por que ele não correspondia à sua paixão. Foram anos a fio, com a moça perseguindo o amado, e ele dando um jeito de escapar.

Naquela noite, Olegário decidiu acabar com tudo. Pegou o revólver do pai e foi a mais um encontro imposto por Cecília. A moradora da casa da frente estava no quarto, preparando-se para deitar. Ouviu o grito. “Não aguento mais, Cecília.” E os três tiros.

– Não suportou o remorso e se atirou nos trilhos – disse a mãe da morta, a costureira Amália.

Fred passou sua matéria por telefone, abraçou seu guarda-chuva, e foi direto para casa. Só 11 horas da noite, bem passadas, os rapazes pescaram a história, na ronda das delegacias. Rago virou a manivela do telefone. Paulo Fortes mandou parar as máquinas. Um texto conciso com o drama da Penha entrou no lugar de uma nota sobre o roubo do carro de um vereador. A nova manchete criada em dois minutos por Paulo Fortes iluminou a primeira página.

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Matou, e se atirou nos trilhos

DEUS ESCREVE

CERTO POR

LINHAS RETAS

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O quase furo de Fred deixou os rapazes ansiosos. O pequeno homem tinha acompanhado a ação da polícia. O que contaria em sua matéria? Logo cedo, compraram o Expresso da Noite. Sob o título “Morte nos trilhos”, vinha uma nota com um pálido resumo do caso. O furo (que teria levado Paulo Fortes ao delírio) estava nas últimas três linhas. “Olegário, na verdade, amava Cláudio. Com a morte da irmã, Cláudio recusou-lhe seu amor. E ele se atirou sob o trem.”

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O prontuário de Miúro Yamaki, na polícia, mostrava cinco detenções por suspeita de envolvimento em mortes não esclarecidas. Em uma delas, a polícia encontrara traços de veneno no corpo da vítima. Mas nas cinco vezes o suspeito fora liberado, pois não havia o menor indício de que tivesse qualquer coisa a ver com aquelas mortes.

O dossiê continha a foto oficial – frente e perfil – do personagem, mas uma cópia maior, colorida, fora anexada ao papelório. Nela, Miúro aparecia nu da cintura para cima. Exibia o tronco e os membros inteiramente tatuados. Uma “nota de alerta”, manuscrita, explicava que o corpo tatuado era característica da Yakuza, a máfia japonesa. “Mas não há registros de que tal organização criminosa esteja agindo nesta capital, ou de que o suspeito a ela pertença.”

Rago recebeu as informações em primeira mão, de Castilho, mas sabia que não conseguiria segurar o furo até o fim do dia. A polícia tinha interesse em divulgar a foto do suspeito, para aumentar as chances de pegá-lo. Quando o delegado parou de falar, disse:

– Tem um ponto que não bate. Por que a máfia japonesa iria matar uma mulher num treme-treme?

O delegado foi rápido:

– Simples. Ela não quis pagar taxa de proteção.

Rago notou que os rapazes da sala de imprensa estavam muito atentos à conversa. Cobriu o bocal do telefone com a mão, antes de responder.

– Se ela fosse da colônia japonesa, faria sentido. Mas não era… E eu nunca ouvi falar em Yakuza em São Paulo.

Castilho não se convenceu.

– Máfia é uma coisa que não tinha e de repente pode ter. Não vamos deixar nada de lado.

Estava certo, mas a questão continuava em aberto: por que o japonês, se fosse mesmo ele, teria matado aquela mulher? Por que fizera as encenações, o falso punhal, o cordão no pescoço, o líquido que parecia veneno mas era licor de menta?

A conversa foi interrompida por Castilho.

– Vou te deixar um momento. Não desligue, está chegando uma coisa aqui.

Dois longos minutos correram, tempo em que o repórter deu-se conta de um fato. Garoto não estava na sala. Onde estaria o bendito foca? Será que ele…

– Alô, Rago? – A voz de Castilho voltava, num tom de quem recebe uma informação promissora. – Esta é só para você, e com isso ficamos quites. Não lhe deverei mais favor nenhum, nem você a mim.

– Fale de uma vez, o que diz o laudo da perícia?

– Agora você deu para adivinho… Diz que um veneno igualzinho àquele que achei na espada do cozinheiro-samurai matou nossa amiga.

O caso da morta do treme-treme começava a andar. Na verdade, dera um belo passo: já se tinha o assassino. Quando fosse preso – se fosse – o crime estaria esclarecido. Rago desligou e percebeu que estava com uma expressão animada. Tratou de fechar a cara. Avaliou, discretamente, o comportamento dos rapazes. Não, ninguém percebera nada de sua conversa.

Ia pescando o paletó do encosto da cadeira, quando lembrou-se: onde estaria Garoto?

– Quede o moleque? – perguntou a Paçoca, que estava mais perto.

Quem respondeu foi Venâncio:

– Faz dois dias que não aparece. Será que as Folhas se livraram dele?

A informação fez Rago balançar entre dois sentimentos. Em um momento, achava bom que o foca destrambelhado sumisse de sua vida, não o incomodasse mais com suas doidas paixões. No outro, esperava que não fosse assim. Escrevia bem, era aplicado, e afinal… ainda só um foca. Vestiu o paletó e saiu.

A Boca do Lixo não mudava nunca. Havia muita gente no meio da rua, indicando que ali era um território livre, ocupado pela fauna do submundo. Lembrava-se do que Venâncio escrevera sobre o lugar: “Antro de rameiras e meliantes, empestado pelo cheiro da erva maldita, vendida em qualquer esquina”.

Ia pela calçada da Rua Aurora. Ponderava: se esperava que alguém o ajudasse, tinha que falar com quem mandava no lugar. Onde Big King estaria metido? Ninguém sabia ao certo onde o Rei da Boca morava – se é que tinha casa fixa. Achá-lo na alcova de uma de suas amantes era difícil, pois possuía um temperamento volúvel. Não mantinha por muito tempo o mesmo plantel de eleitas. Será que… As divagações sumiram de sua mente. Sua atenção foi desviada para um casal que seguia agarrado, à sua frente. “Aquele … Não é possível!”

Apertou o passo. Alcançou o casal e não perdeu tempo. Agarrou a mulher pelo braço e afastou-a com um gesto rude.

– Cai fora, piranha.

Garoto olhou para o colega, chocado.

– Como você trata assim uma moça…?

Rago agora agarrou o foca.

– Onde você achou essa mulher? Você sabe quem é ela?

– Entrei num bar para tomar um guaraná e ela ficou me olhando… Gostei dela, me pareceu muito educada.

– Para seu governo, essa é Dalva, a rainha do suadouro.

– Suad…?

– Você não sabe o que é o conto do suadouro, não é? Eu explico. Ela te apanhou como uma mosca na teia. Disse que ia satisfazer todos os seus desejos, não foi? Ela disse ‘faça o que quiser de mim?’.

– Puxa, como você sabe? Você também…?

Rago controlou o impulso de dar-lhe um cascudo.

– Sei, por que ela foi presa várias vezes. Pega um trouxa como você, leva para um quarto, ou uma quebrada, e sabe quem está lá? O cúmplice dela, que lhe dá uma surra e leva tudo o que você tem. Você é assaltado e fica sem coragem de ir à polícia contar como foi. E se você for, e eles prenderem os pilantras, ele diz que lhe bateu porque você cantou a mulher dele.

Garoto estava lívido. Mas o outro não tinha terminado.

– O que você faz aqui? Por que não aparece na sala de imprensa? – Sentiu-se mais uma vez um irmão mais velho, ou (um arrepio eriçou-lhe os pêlos) um tio, mas a pergunta já havia lhe escapado.

– As Folhas me liberaram para ficar só atrás do Miro.

– Se eu fosse você desapareceria deste lugar. É muito perigoso para principiantes. Ainda mais metidos a conquistador.

Garoto fingiu não ter ouvido a última frase, e agradeceu o conselho. Recobrara a cor, mas ainda estava muito assustado. Não se fez de rogado. Parou um táxi, e embarcou, rápido. Quando o carro arrancou, deu adeuzinho agitando os dedos. Seu salvador recomeçou a caminhada. Notou que recuperara o humor, e estava bem disposto. Sempre, se livrara da concorrência.

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King tinha uma informação que valia ouro. Desta vez estava vestido, com um surrado robe violeta que lhe apertava a barriga. Rago o encontrara à frente de uma pequena mesa, velha, encardida, com os pés bambos. Sobre ela havia uma garrafa de vinho doce, que o Rei da Boca do Lixo entornava, a cada pouco, em um copo de água americano. Entre uma frase e outra, tirava rápidas baforadas do charuto. Sentia-se mesmo um rei.

– É o que lhe digo, Rago. Eu sei uma coisinha ou outra desse caso, mas não posso passar para a imprensa. Os tiras me arrancariam a língua.

O repórter, encostado na soleira da janela (não havia outra cadeira), tentava dissuadi-lo.

– Mas, meu caro King. Como vão saber quem me contou essas… coisinhas?

Tivera muito trabalho até descobrir que o rei vivia provisoriamente na muito afamada casa amarelada da Rua Vitória, onde Madame Lolita mantinha suas meninas. Agora, ao ver o cuidado com que falava, sabia que o fumador de charutos havia batido em alguma coisa muito boa. Tão boa, que não estava disposto a revelá-la graciosamente a um jornalista abelhudo. Este, por sua vez, fazia mais uma tentativa, quando Madame Lolita em pessoa surgiu na sala. Ao ver o visitante fez uma expressão de horror.

– Mas o que é isto, King? Ofereça a bebida para o senhor Rago. Vou buscar um copo e uma cadeira.

O jornalista animou-se. Quando um intruso senta, na casa de alguém, conquista território. Fica mais difícil livrar-se dele. Uma mulher magra e envelhecida, que devia ser a empregada, trouxe a segunda cadeira e o segundo copo. King, de má vontade, despejou-lhe um pouco do vinho doce. Rago disse “à sua saúde”, mas deu não mais que uma minúscula bicada. Continuou o assédio.

– Soube que foi você quem descobriu o assassino, o tal Miúra…

– Eu sei de tudo, neste lugar. Não dizem que sou o Rei da Boca?

– E vai deixar um veterano repórter policial na mão?

– Já lhe disse. Eu…

Nesse momento uma mulher entrou aos gritos na sala. Tinha um corte no braço e perdia sangue. King contraiu apenas uma sobrancelha, num sinal de contrariedade.

– A Nini me atacou, aquela vadia ordinária – esbravejou a mulher.

Nini surgiu com uma navalha aberta, sangue escorrendo da lâmina. E olhando para King, como uma injustiçada olharia para o Rei Salomão:

– Ela quis roubar meu homem.

A navalha era do homem.

O rei King deu sua sentença:

– Saiam as duas já desta casa e não voltem mais.

Nini, assombrada:

– Mas a casa é minha! Sou eu quem paga o aluguel.

E o rei:

– Foda-se.

King perdera a serenidade. Rago percebeu que não havia mais o que fazer ali. Despediu-se, desceu as escadas para o térreo e voltou à rua. Já estava se afastando, quando ouviu a voz do rei, que se debruçara à janela (parecia ser seu estilo).

– Ei, jornalista. Eu se fosse você iria xeretar na esquina… você sabe qual.

Na esquina… Obrigado. Que esquina? Duas casas depois do restaurante de Miúro havia uma esquina. Será que o japonês estava escondido por ali? Difícil… E o prédio da São João, o treme-treme? A esquina mais próxima era com a Praça Júlio Mesquita… A praça, por sua vez, confluía com a Rua Vitória… Esta com a Avenida Rio Branco. Bem, nesta esquina a mulher misteriosa descera do Mercedes Benz com vida pela última vez.

Rago achou que não teria nada a perder se desse uma rodada por ali. Voltou a falar com pessoas a quem já interrogara, e notou que estavam um pouco arredias. Certamente a tiragem do delegado Castilho havia passado por elas sem muita sutileza. Entrou num bar e pediu um café, em que mal tocou (estava horrível). Foi quando procurava nos bolsos uma moeda, para pagar a bebida, que o cambista do jogo do bicho entrou.

– Vai uma fezinha aí, doutor?

Ora, esse homem palmilhava aquele pedaço da cidade, conversava com todo mundo. Via tudo. O repórter mostrou-se muito interessado. Investiu algum dinheiro no cachorro. O bicheiro começou a falar, e com mais um pouco estava contando sua vida. A conversa, no entanto, foi tomando outro rumo, sutilmente imposto pelo apostador. Chegaram ao extraordinário momento em que o Mercedes Benz escuro surgia com a mulher.

– Diz uma coisa, meu amigo. Ninguém anotou a placa do carro para fazer um joguinho?

Rago disparou à queima roupa a bala guardada desde que a conversa se iniciara. Afetou nisso um tom muito natural, embora mal pudesse conter a ansiedade. O bicheiro, no entanto, apenas meneou a cabeça, num gesto afirmativo. E começou a contar um caso comprido, da placa de outro carro, que dera macaco na cabeça.

– Mas e a do Mercedes? – perguntou, assim que o outro terminou a história.

– O veado. Ele anotou, mas não deu nada.

– Ele era viado?

– Não, não. É o Elias sapateiro. Jogou a final da placa, 24. É o veado. Mas deu o coelho.

A oficina de Elias se resumia a uma porta e um pequeno corredor. Acima da bancada de sapateiro, havia um pedaço de papel, com um letreiro desenhado em tinta de pintar sapato: “Troco salto na hora”. Rago teve que esperar que Elias costurasse a borda de uma bota, para obter sua atenção. O homem olhou antes para seus sapatos do que para seu rosto. Quando ergueu o olhar, abriu um sorriso amistoso.

– Sapatos de boa qualidade, em perfeito estado. O que o senhor quer com um remendão?

O outro resolveu abrir o jogo.

– Sou Rago, repórter do Post.

– Ah, o Poste. Bom jornal. Em que crime você está trabalhando?

– No da mulher do Mercedes Benz.

– Nem me diga. Outro dia fiquei aí na esquina, esperando ela chegar no carrão, só para anotar a placa. Uma fezinha no bicho, sabe como é… Não arrisquei o número inteiro, a milhar. Só a dezena, o 24. Veado. Mas não deu nada…

O repórter suportou a mesma situação vivida pouco antes, com o bicheiro. Uma grande ansiedade, disfarçada por uma pergunta singela.

– E o papelzinho com o número, o senhor guardou?

Elias ainda mantinha um ar pesaroso. Pegou o par da bota que costurara.

– Não, joguei fora. Do que iria me servir?

Para ele, nada. À polícia, bastaria para identificar o dono do Mercedes Benz. O papelucho com o número certamente fora amassado e jogado na lata do lixo. Essa idéia perturbou de tal maneira Rago, que ele mal balbuciou um agradecimento e virou-se para sair. O sapateiro chamou-o de volta.

– Joguei o papel fora mas…

– Mas?

– … guardei o número bem aqui dentro da minha cabeça.

Aquilo que King sabia, e não quisera contar, valia mesmo ouro.

Quando os Repórteres Usavam Revólveres, novela policial de Valdir Sanches, está sendo publicada em capítulos.

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O jornalista Mario Marinho editou esta novela em sua revista eletrônica JT Sempre. É da edição feita por ele a ilustração deste post.

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