Quando os Repórteres Usavam Revólveres (3)

O que acontece na sala de imprensa? A barulheira das máquinas de escrever cessou. Foi-se o burburinho das conversas cruzadas sobre as cabeças. Os olhares desfocam as laudas; transferem-se para a porta. Aqui, emoldurada pelos batentes, está uma deusa.

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Negra cabeleira derramada sobre os ombros, a emoldurar um rosto belo. Nele cintilam dois faróis, tão expressivos são os olhos. Perto dos lábios, cobertos por um batom carmim, uma pinta, falsa. Sílfide dá um passo. A sala de imprensa agita-se. O vestido justo marcara sua perna.

Caminha, em cima de seus saltos sete e meio. Seis passos, até a mesa de Venâncio. O rosto do veterano repórter ilumina-se. Empertiga-se na cadeira. Ouve-se, então, a voz sedosa:

– Procuro o Rago. O senhor pode me dizer onde está?

Venâncio murchou. Rago, naturalmente.

– A senhorita…

– Marion, muito prazer.

A palavra prazer causou novo transe.

– Como a senhorita pode ver, não está aqui.

– Acha que demora?

– Francamente não sei. Os repórteres vão a tantos lugares… A senhorita quer sentar e esperar?

Garoto saltou da cadeira.

– Por favor…

zzvaldirsanchesParecia hipnotizado. Respirava mais forte desde que vira a aparição enquadrada na porta. Como uma Marilyn morena, Marion passou bem perto dele, deixando no ar um rastro de Chanel nº 5. Sentou-se, e a sala de imprensa prendeu a respiração. Ia cruzar as pernas. Cruzou-as… mas de forma recatada. Logo, no entanto, descruzou-as e cruzou-as para o outro lado, deixando à vista uma porção insinuante de seu, como dissera com propriedade Armandinho, coxão.

Naquele momento, Rago cruzava as pernas à frente de um delegado de polícia.

– Vim trocar figurinhas – disse a Maurício Castilho.

O policial da Delegacia de Homicídios olhou para ele, desconfiado:

– Você deve ter coisa boa.

– Não, não. Apenas descobri certo detalhe. Não sei se o seu pessoal já levantou…

O delegado arqueou o corpo para frente, de modo a encarar diretamente o interlocutor:

– Vou lhe ser franco. Meus homens interrogaram toda a mulherada daquele maldito puteiro e não descobriram porra nenhuma. ‘Pessoa educada, não ligava pra ninguém’, só ouviram isso. Há uma limpadeira que trabalhava para a vítima. Estamos atrás, mas não conseguimos nada.

Rago achava-se em situação bem melhor que a de Castilho. Um repórter, no entanto, não é um policial. Não se propunha a esclarecer um homicídio, buscava apenas a exclusividade da informação, no momento certo. Abriu o jogo. Contou sobre as idas e vindas da mulher que intrigava uma rua inteira.

– Ah, e a moça vendedora de café, Sissi, esclareceu para nós o sumiço da bolsa.

O delegado reagiu de forma humorada, um nadinha irritado.

– Que bom, até a moça do café sabe mais do que eu.

O repórter contemporizou.

– Não é isso. Encontrei a moça casualmente. Como mulher, notou o detalhe. Nossa amiga falecida não levava nada nas mãos. Nem bolsa. Nada.

Castilho queria perguntar de uma vez se o outro tinha a informação essencial – de onde ela vinha – mas esperou. Rago não fez suspense.

– Mostrei a foto a uma pessoa que fica na esquina da Vitória com Rio Branco. Reconheceu a mulher que, perto das duas da tarde, era deixada no outro lado da esquina por um carro… Segure-se.

– O quê?

– Um Mercedes Benz escuro.

– Não diga que o motorista…

– Fardado. Para não chamar atenção, não descia. Esticava o corpo e abria a porta pelo lado de dentro. Ela saía e começava a andar pela Rua Vitória.

Castilho desabou em sua poltrona.

– Uma madame que vai se virar num treme-treme. Uma ninfomaníaca. Realiza sua fantasia de viver a vida de uma prostituta.

Ficaram em silêncio por meio minuto. Sobre sua mesa de delegado, Castilho deixara uma pilha de inquéritos de casos em andamento. Seguramente nenhum deles, nem os que entupiam as prateleiras do Forum, guardavam história tão incomum.

O silêncio foi rompido pelo jornalista.

– Quem mata uma mulher que vive uma fantasia sexual? O marido, ao saber de tudo? Um amante que achou intolerável ser traído por desqualificados que ela nem conhecia? Um cliente psicopata? Ou…

– Ou alguém que descobriu tudo, tentou extorqui-la, não conseguiu e se vingou.

Restava um problema, fosse qual fosse a hipótese. Por que o assassino armou a encenação das falsas causas da morte? Uma resposta provável poderia ser: para chamar a atenção. Mas nenhum dos que se encaixavam como suspeitos – marido, cliente, amante, autor de extorsão – teria interesse nisso. Ao contrário, trataria de apagar todas as evidências, por medo de deixar pistas.

As figurinhas recebidas por Rago, na troca com Castilho, pouco valiam. O Instituto Médico Legal continuava no escuro sobre a causa da morte. Os exames das vísceras ainda não haviam sido feitos. O delegado agradeceu o outro.

– Meus homens vão trabalhar nas informações que você trouxe. Se chegarem a novos fatos, te aviso. É o mínimo que posso fazer.

Na rua, Rago ponderou que seria mais seguro escrever a notícia na redação, mesmo sujeito a novas efusões laudatórias de Paulo Fortes. Mas antes tinha uma questão a resolver na sala de imprensa. Subiu no jipe.

– Toca para a redação – imitou-o Pisão.

– Errou – reagiu Rago de mau humor.

Assim que entrou na sala de imprensa notou que havia algo no ar. Alguma coisa havia acontecido, e tinha a ver com ele. Os rapazes o olhavam de maneira diferente… como se seu conceito tivesse subido muitos pontos. Venâncio, por fim, falou:

– Ela é maravilhosa, parabéns.

O ambiente descontraiu-se. Os rapazes passaram a fazer considerações abertas sobre as qualidades dela. Um monumento! Aquela pinta perto da boca… Rago entendeu tudo.

– O que ela queria? – perguntou a Gênio.

– Falar com você. Contei que era seu fotógrafo de dobradinha, mas ela disse que precisa ser pessoalmente. Talvez quisesse lhe passar alguma informação…

O felizardo, como agora o chamavam, encerrou o assunto e sentou-se à sua mesa. Abriu a gaveta, mexeu em uns papéis. Deu um telefonema. Só dissimulação, até poder fazer um sinal a Garoto. Levou-o à padaria Santa Tereza.

– Você me passou uma informação, sobre a mulher que limpava o apartamento da vítima. Vou retribuir, não com meu furo completo, mas o suficiente para livrá-lo de cobranças do seu jornal. Daqui para frente, não passe informações exclusivas a mim e a ninguém, nem espere que eu lhe passe.

O rapaz apenas o olhava.

Não falou no Mercedes Benz com motorista, mas foi leal.

– Há indícios… uma boa possibilidade, de que a morta do 84 seja muito diferente das outras. Provavelmente bem de vida. Não me pergunte detalhes, ainda não sei. Nem a polícia sabe. O que há até agora é um corpo sem nome no necrotério e…

Parou de falar. Notou que Garoto não prestava atenção ao que dizia. Parecia não estar interessado em nada daquilo. Pediu mais dois cafés, e tratou de mudar de conversa.

– A Penélope… como vai?

– Não há mais Penélope – a resposta veio brusca. – Rompemos. Esta tarde desapareceu da minha vida.

– Você fez bem, ela não…

O foca interrompeu-o.

– Rago, você é meu amigo?

Notou que estava sofrendo.

– Claro, por que essa pergunta, o que …?

– Vou contar-lhe um segredo, mas acho que você vai me odiar por isso. Se me bater, não vou reclamar.

– Fale.

Garoto vacila. Enrubesce. Dá a impressão de que vai desistir de tudo e sair correndo. A frase por fim escapa-lhe tão alto, que chama a atenção dos outros fregueses:

– Amo a senhorita Marion.

E, baixando o tom:

– Estou perdidamente apaixonado por ela. Só a vi uma vez, mas não posso continuar a viver sem ela.

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Estranho, pensaria um desavisado que entrasse na sala de imprensa, no dia seguinte, meio de tarde. Estava deserta! Não se via ao menos um paletó no encosto das cadeiras. Pelo chão, algumas laudas, uma carta de baralho (um rei), partes de jornais, como se um vendaval tivesse varrido o lugar e levado os rapazes. Sobre a mesa de Venâncio, a primeira página do SP Post chamava na manchete o furo de Rago. Mais uma criação de Paulo Fortes:

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Morta do punhal

TARA DA RICAÇA

ERA SE VIRAR

NO BORDEL

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Naquele momento, os rapazes não estavam minimamente preocupados com a ricaça, o bordel ou o que quer que lhes dissesse respeito. Atravessavam a Praça do Patriarca, com muita pressa. Desviavam da estátua de José Bonifácio, e sumiam-se Galeria Prestes Maia adentro. Subiam na escada rolante, à toa. Pois não esperavam o transporte; para ganhar tempo, pulavam de degrau em degrau.

Uma hora antes, alguém resolvera examinar um caixote deixado a um canto, na Ladeira da Memória. O caixote estivera lá a madrugada toda, talvez desde o fim da noite anterior. O curioso abriu-o, virou-o. Um cadáver derramou-se para o chão. A descoberta macabra valia, nesse momento, uma chamada na primeira página, seguramente com o nome que inicia esta linha. No entanto…

O investigador de polícia Afrânio Gonçalves dispôs-se a caminhar o cerca de um quilômetro até o largo, quando a notícia do corpo do caixote chegou à Central de Polícia. Os colegas gostaram do desprendimento de Afrânio. Raras vezes um caso atendido por ele tivera repercussão que exigisse mais do que uma descansada rotina. A tarde estava quente. Ninguém estava disposto a sair para a soalheira.

O aplicado policial passa pela Praça do Patriarca, desce as escadas rolantes, atravessa o Vale do Anhangabaú e chega à Ladeira da Memória. Já juntara povo. Mas dois policiais militares de uma rádio patrulha preservavam o lugar onde se viam o corpo e o caixote. O morto era um rapazola, magro, uns catorze, quinze anos, vestido com simplicidade, calça e camisa. Calçava apenas um sapato, o do pé direito.

Afrânio abaixou-se. Examinou-o, sem tocá-lo. Não viu ferimento que justificasse a morte. Em uma segunda avaliação, notou algo de estranho nos braços. Aproximou bem o rosto, e descobriu do que se tratava: dois furos em cada um dos braços. Os dois policiais militares notaram que ficou lívido.

Em poucos minutos a bomba explodiu na Central: o Vampiro voltou a atacar. A morta do punhal desabava das manchetes. O caso do Vampiro era mesmo estranho. Não ia direto ao pescoço, como um Drácula. Mas mordia… ou furava os braços da vítima. O sangue esvaía-se, até causar a morte. Outro detalhe, nada insignificante: o vampiro não atacava mulheres, mas adolescentes homens. Aquele era o terceiro corpo, em quatro meses.

Os rapazes da imprensa afinal chegam, e se angustiam. O largo está tomado por curiosos. Não há como chegar ao corpo. Junto deste, policiais da Guarda Civil fazem uma barreira, precária. Todos querem se aproximar. Quem perderia a oportunidade de ver uma vítima do vampiro em carne e osso?

O inspetor que comanda os policiais nota a situação dos rapazes. Extrai do bolso um apito e põe-se a soprá-lo furiosamente. O povo afasta-se um pouco. No vazio, instala-se um cordão de isolamento. Os repórteres adotam, então, o procedimento usual: pulam o cordão e se concentraram no lado de dentro, na companhia do morto. Garoto desta vez não vacilou: pulou junto.

O delegado André Noronha chega e… pula o cordão. Era dele o plantão na Central de Polícia. Agacha-se para ver melhor os braços da terceira vítima.

Um, homem espremido atrás do cordão, não se contém.

– Foi o vampiro!

Um arrepio se alastra pelo povo. O movimento provoca pressão sobre o cordão de isolamento, que parece a ponto de romper. O inspetor reage; põe o apito na boca, e sopra.

Nisso, chega Rago. Com esforço, alcança o cordão. Pula e é vaiado. A pressão sobre o cordão volta, mas as pessoas por fim se acalmam. Venâncio, experiente, tentava tirar do delegado a confirmação oficial de que o Vampiro agira novamente. Noronha se divertia:

– Na sua idade você acredita em vampiro?

– Vá lá, doutor, no assassino que age como um vampiro. Por isso escrevemos com V maiúsculo. Um personagem…

– Há indícios, mas qualquer conclusão agora seria precipitada. Depois que recebermos o laudo do IML…

Rago intervém.

– Tem dois furos em cada braço?

– Sim, mas isso não quer dizer…

– Se tem foi o Vampiro. Quem mais podia ser?

– Um imitador do Vampiro…

– Para nós está bom: ‘Mais um vampiro à solta na cidade’.

Os repórteres vêem o cadáver. Adolescente, roupas simples. Curiosamente, só veste um pé de sapato, o direito. O que pode significar isso?

– Por ora, nada – responde Noronha. Pode ter caído, quando o criminoso levou o corpo para o caixote.

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De volta à sala de imprensa, mal Rago senta-se à mesa, o telefone toca. Atende no primeiro toque:

– Rago.

– Ah, meu extraordinário repórter. O que seria da minha vida de criador beletrista sem você? Então, hoje nos dará o admirável vampiro, esse ser das trevas que suga os braços de garotos inocentes…

Ia começar novamente.

– Não suga nada, Paulo Fortes. Não force.

– Mas um vampiro suga suas presas…

– Esse criminoso estúpido fura a veia dos jovens com um instrumento perfuro-cortante… alguma espécie de estilete, e o sangue escorre.

– E quem garante que, antes de escorrer, ele não suga?

Rago, cansado daquilo, com a lauda em branco à sua frente, ironiza:

– Sim, toma o sangue como se fosse um refresco.

– Você disse refresco?

A conversa fica por aí. Rago descreveria muito claramente, em seu texto, as conclusões da polícia. O sangue se esvaía, e isso causava a morte. Mas sabia que boa parte dos leitores não acreditaria. Era mais excitante pensar que um vampiro mordia mesmo os braços dos garotos para sugá-los.

Paulo Fortes despedira-se com um tom apaziguador.

– Pode deixar que cuidarei bem do seu vampiro.

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Os jornais deram um bom destaque para o caso, mas nada que se comparasse à manchete do Post:

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Atacou de novo

VAMPIRO TOMA

SANGUE DE

CANUDINHO

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Rago saiu para a Rua do Carmo, e pôs-se a caminhar. Mais um pouco, a noite se fecharia sobre a cidade. Estava quente para julho. As calçadas estocavam a poeira do dia. A garoa, no entanto, não dera sinal; talvez estivesse a caminho, soprada pelos ventos distantes do oceano. Ia pensativo. Quem o conhecesse sabia que não estava minimamente preocupado com ventos e calor. Pensava em Paulo Fortes.

A obsessão do fechador da primeira página, em valorizar a manchete, mesmo em casos por si só sensacionais, o aborrecia. Muitas vezes parecia uma provocação ao discernimento do leitor. A fórmula do Post era simples, a mesma de qualquer jornal popular. Destaque para polícia e esportes. Um toque erótico, com a boazuda da capa. É verdade que o fechador não podia falhar. O jornal não tinha assinantes; vendia nas bancas. Sem uma boa manchete, as vendas caíam.

De tal forma o vampiro o enfeitiçara que a morta do punhal por pouco não havia espirrado da primeira página. Parecia a Rago que um novo ataque do Vampiro era por si só notícia de grande apelo; Paulo Fortes não precisava fazê-lo tomar sangue de canudinho. No fim da noite, foi obrigado a aceitar os fatos. Soube que aquela edição fora a mais vendida em dez anos.

Seguia para a Catedral da Sé, embora não o movesse razão de natureza espiritual. Mas as ansiedades de um jovem jornalista com pendor a apaixonar-se por mulheres que Venâncio às vezes chamava de horizontais. Pela terceira vez, em três dias, via-se obrigado a deixar a sala de imprensa para atender Garoto. Cansara-se da velha padaria da Praça João Mendes. Marcou o encontro no lugar onde as pessoas marcavam encontros. Em frente à Catedral. A vantagem, ali, era de que, se a pessoa aguardada demorava, a outra podia sentar nos degraus da igreja para amenizar a espera. Não houve espera; quando chegou, deu com Garoto em pé, no primeiro degrau.

Notou que estava preocupado.

– O que há?

– Nada…

Não se conteve meio minuto.

– Dei um fora e todo mundo na redação ficou me gozando…

– Você não começou a matéria com ‘Enquanto’…

– Muito pior.

– Confesse.

– O caso do Vampiro. Escrevi, sem perceber, que tinham encontrado um cadáver morto. O secretário de redação em pessoa me ligou, para perguntar se alguma vez eu tinha visto um cadáver vivo. Ouvi risadas perto dele.

Rago pensou em suas próprias façanhas. Não havia escrito que um homem fora assassinado com dois tiros no peito e um no tórax? E o título do Carlinhos Souza, seu amigo, sobre o corpo enterrado no mar?

Pôs a mão no ombro do outro.

– Não se aborreça, menino. Escrevemos sob pressão, contra o relógio. Não há como segurar certos pequenos enganos.

Já estavam mais ou menos acertados sobre o que se seguiria. Garoto queria que Rago o levasse a Marion.

– Vou explicar-lhe como Marion ganha a vida – começou o veterano.

– Você já disse – respondeu o aspirante. – Os homens pagam para dançar com ela.

– Não disse tudo. Não é difícil que essas moças e seus clientes terminem o programa em um hotel de alta rotatividade.

Garoto achou graça do nome – alta rotatividade – mas entendeu o significado. Adotou um tom decidido:

– Não vejo problema. Vou…

– Tirá-la dessa vida.

– Sim. Como adivinhou?

– É a frase pronta, embrulhada para presente, com laçarote e cartãozinho, de todos os que caem nessa teia.

– Nós? – Garoto abriu os braços, num gesto de indignação.

– Exatamente, todos os que… hei, o que é isso?

Pela abertura do paletó aparecia a coronha de um revólver enfiado em um coldre.

– Você está armado?

– Sim, perguntei aos rapazes como… Disseram que era simples… Fui até a sala de carga, no depósito da polícia. Muitas armas, pegas com os bandidos. Dezenas… Escolhi esta, quer ver?

– Não.

– Fiquei como depositário, foi só assinar.

Estava pronto para impressionar Marion.

O incidente devolveu Rago à sua realidade de vida. O que fazia ali mimando esse menino, como se fosse um… no mínimo um sobrinho predileto? Sujeitinho de boas maneiras que não podia ver uma marafona bonita sem cair de paixão por ela?

Deu um passo disposto a deixar um vago pedido de desculpa e sair dali sem se despedir. Em vez disso, sua boca articulou uma única palavra.

– Vamos.

Anoitecera. O ponto de táxi estava vazio. Tiveram que esperar 15 minutos até que o primeiro estacionasse. E o motorista estendesse o braço para abrir a porta, dizendo:

– Entre, entre Rago. Prazer em atendê-lo.

Garoto pisou a calçada da Avenida Ipiranga com um sorriso nos lábios. De longe vira o neon vermelho resplandecer, com ágil letra cursiva, o nome conhecido: Guanabara Danças. Se o letreiro não existisse, os interessados saberiam que estavam diante desse “templo da dança”, como o chamava um cronista da noite, pela música que vazava dos poros do edifício.

Passaram pela portaria sóbria, subiram dois lances de escada… e ali estava. O grande salão de assoalho encerado, cercado por algumas dúzias de mesas. A bruma da fumaça dos cigarros pairava por cima delas. No centro do salão, os pares dançavam um samba rasgado, o “Mulata Assanhada” de Ataulfo Alves. O sambão vinha depois de uma seleção romântica, para acordar os dançarinos, principalmente os homens que colavam demais em seu par.

Grande parte da freguesia estava lá não só para beber e dançar, mas para galantear as táxi-girls, namorá-las durante as seqüências de músicas. Se fosse o caso, mais tarde…

Era cedo, mas a casa já estava cheia. Garoto parou à entrada do salão, fascinado. Rago piscou para o garçom mais próximo. Em segundos, a mesa para o jornalista do Poste estava disponível. Pediram bebidas: conhaque e guaraná. Morenas vistosas, dançando com seu par de momento, eram em maior número na pista. Nenhuma, é verdade, exuberante como Marion.

Onde estaria ela? Demorou algum tempo até vislumbrarem a paixão de Garoto. Dançava com um homem de uns 50 anos, terno risca de giz, que se esforçava em aconchegá-la junto de si. A dançarina, no entanto, tinha o traquejo de muito tempo de salão. Cedia apenas em breves momentos – o suficiente para o cliente não desistir da dança.

Garoto grudou os olhos na moça. Seu colega, por sua vez, foi tomado de súbita aflição. Será que esse garoto mimado sabe dançar? Perguntou a ele.

– Sim, tive uma professora de dança, na adolescência.

Professora de dança… Cursei uma gafieira, pensou Rago.

Marion dançou depois com um homem de bigodinho fino, e a seguir com um de cabelo tingido. Só então notou que, de uma mesa bem próxima da pista, um homem de bigodinho e gravata escura lhe fazia sinais. Não parecia estranho… Então viu Rago, sorriu, dispensou o par, e desapareceu pela porta com a inscrição Toilette – Damas.

Garoto engoliu o sorriso que já preparava para receber a moça.

– Foi para o banheiro…

– Retocar a maquiagem.

Em dez minutos estava na mesa. Mal sentou-se, a orquestra atacou com outro acorda salão, como fizera com a mulata de Ataulfo. Impossível conversar, a menos que uma boca estivesse a não menos de 20 centímetros de um ouvido. Quem observasse aquela mesa veria que o homem de bigode falou um tanto, como se explicasse algo importante. O mais novo sorria muito, com jeito ansioso, mas calado. Logo a morenaça também sorria, encantada.

O casalzinho foi para a pista, e ninguém mais teve vez com a bonitona. Rago sentiu uma ponta de ciúmes. O pilantra dançava samba muito bem, para um filhinho de papai. Marion gostara dele. Na pista, agora fazia generosas concessões, quando seu par dava-lhe um chega pra cá. Esticou o polegar para um garçom e pediu mais um conhaque.

Não havia bebido metade da dose, quando aconteceu uma coisa não muito rara: fechou o tempo no dancing. Um tipo grandalhão, um pouco bêbado, de sapatos brancos, enfiado em um terno maior que ele, resolveu implicar com aquele molecote pó de arroz que não largava a melhor dançarina da casa. Rago só percebeu quem era o pivô do rififi quando o sujeito já estava muito perto dele.

A orquestra pára. O homenzarrão pega Garoto pela lapela do paletó e o chacoalha. Joga-o ao chão. Tenta chutá-lo. Marion grita. O agressor está a ponto de se lançar sobre o bibelô dela. Rago começa a correr em salvação do amigo, sem esperança de chegar a tempo. O grandalhão, no entanto, titubeia. Faz que vai, mas não vai. Uma expressão de medo surge em seu rosto. O vacilo dá tempo para Rago e dois seguranças caírem sobre ele. Contido o homem, a orquestra despeja sobre o salão um abafa fuzuê de cento e vinte decibéis. O baile recomeça, como se nada tivesse acontecido.

Passado o susto, Garoto começa a gostar muito da situação. A namorada o enche de mimos e carinhos. Dá-lhe um beijo. As outras táxi-girls lhe sorriem, cúmplices. Logo vem o gerente, com ar aflito, apresentar suas desculpas, “em nome da nossa honrada casa”. Dirige-se à vítima:

– Aceita um drinque? Temos scotch legítimo, escocês…

– Não, obrigado, eu não…

Rago o está puxando pelo braço. Não há mais clima para voltarem à pista. A platéia de marmanjos não tiraria os olhos do intruso com seu pitéu. Este, isto é, Marion, fala alguns segundos com o gerente, e, voltando-se para Rago:

– Estou dispensada por hoje.

À porta do dancing, Garoto está intrigado.

– Por que aquele homem parou de me atacar de repente?

Rago tem a resposta. Hesita. Acaba por falar.

– Porque viu o revólver quando seu paletó abriu.

– O revólver? – Garoto começa a rir. Não pára de rir. O amigo e a dançarina se entreolham.

– Revólver? De que adiantaria… Está sem balas.

– Como sem balas? – alarma-se Rago.

– Nunca me passou pela cabeça usar uma coisa dessas. Nem sei como se carrega.

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Um ruído impertinente incomodava Rago. Achou que era um som parecido com o da campainha de um telefone, mas não podia ser. Mal tinha encostado a cabeça no travesseiro. O chamado continuou. Rago por fim pulou da cama, e foi até o console da sala, atender ao telefone. Dormira seis horas. Não chegou a tempo. Quem quer que fosse havia desligado. Lembrou-se imediatamente da briga no dancing. Se o grandalhão estivesse armado poderia ter atirado quando viu o revólver de Garoto. Foi tomado por um sentimento de culpa, por não ter se preocupado quando notou o revólver do amigo, à porta da Catedral. Devia ter tomado a arma dele. Poderia estar morto por falha da pessoa em quem mais confiava na sala de imprensa.

À noite, ao chegar em casa, repassara como fora a despedida, à porta do dancing. Garoto estava eufórico. Tinha uma amante e um revólver, mesmo sem balas, e se envolvera em uma briga num salão de táxi-girls. Nada mau para a primeira noite de boemia. Enfiou-se em um táxi com Marion, e desapareceu. Só então Rago lembrou-se de que Marion o procurara na sala de imprensa. O que queria lhe contar? Com tudo o que havia acontecido, esquecera de perguntar.

O telefone toca novamente. Quem diabos…? Atende:

– Rago.

– Parabéns. Você foi furado pelas Folhas.

Era Fábio, o pauteiro da manhã.

– Eu o quê?

– Vou ler o título da primeira página, decorada por um selinho ‘exclusivo’: ‘Morte do punhal tem suspeito.’

Em dez minutos estava no jornaleiro. Lia: “Nos círculos bem informados da baixa boemia circula o nome do possível matador da mulher do ‘caso do punhal’. Esse nome é Miro. Segundo se diz, pode ser um especialista em envenenar sem deixar vestígios. Até hoje, nunca foi pego pela polícia. O corpo da mulher estava na sala de um apartamento do…”. Sem dúvida, o texto fora redigido na redação, com dados mandados pelo telefone. Mas vinha assinado: Victor Hugo Gonçalves e Silva.

O melhor repórter de polícia do SP Post sentiu-se um idiota. Entrega sua garota (a bem da verdade, uma delas) de bandeja para um foca. Corre para salvar o filho da mãe, quando está em perigo. Ele vai para um hotel com a garota e, entre uma e outra carícia, ela lhe passa um furo. Um furo antes destinado a ele, Rago. Por isso estivera na sala de imprensa. E o que faz o moleque? Manda a informação para frente e o fura!

Valia no mínimo um soco na boca. Anteviu a cena. Entra na sala de imprensa, os rapazes começam a gozá-lo. “Ora, ora. O astro da reportagem policial furado por um foca arrumadinho.” Acaba com a festa esmurrando Garoto. Não, não podia fazer isso. Ia, então, passar-lhe a maior descompostura que já recebera. Humilhá-lo na frente de todos. Foca petulante e traidor! Como reagiria ele? Que desculpas daria?

Subitamente ocorreu-lhe que Garoto diria isto: “Fiz o que você mandou, não passar um furo a ninguém, nem a você.” Sim, Rago dissera isso a Garoto duas vezes, em um mesmo lugar, a padaria Santa Tereza, onde o foca confessara sua paixão por Marion.

Dobrou o jornal e devolveu-o ao jornaleiro. Não quis o dinheiro de volta. Fez tudo o que lhe restava: entrou no café em frente para quebrar o jejum.

Quando os Repórteres Usavam Revólveres, novela policial de Valdir Sanches, está sendo publicada em capítulos.

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O jornalista Mario Marinho editou esta novela em sua revista eletrônica JT Sempre. É da edição feita por ele a ilustração deste post.

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