A palavra pode ser um instrumento poderoso de conhecimento, de mistificação ou de convencimento e persuasão.
Nunca antes na história deste país, como diria um popular político em busca da canonização, o sentido das palavras foi tão maltratado como neste difícil momento histórico que atravessamos.
A cacofonia das redes sociais, que tiveram o mérito de democratizar o debate, ainda que provocando o perverso efeito colateral de dar “voz aos imbecis”, segundo a observação de Umberto Eco, institucionalizou várias formas daquilo que os linguistas chamam de “deslizamento de sentido”.
Nada se presta mais ao “deslizamento de sentido” do que o mau uso de conceitos banalizados pelo senso comum, que às vezes provocam um divórcio irreversível entre significados e significantes.
O campo do debate político se revelou um bom terreno para esse gênero de descasamento entre a palavra e o seu real significado.
Nesse terreno, uma das palavras mais pronunciadas, escritas e maltratadas pelo vozerio popular nestes dias é “golpe”. Como se sabe, ela é usada para definir movimentos que visam retirar do poder governantes democraticamente eleitos, através de manobras ilegais e anticonstitucionais para substitui-los, à força, armada ou não, por outros desprovidos da mesma legitimidade.
Para não ir muito longe, golpe foi a tentativa de grupos militares de não dar posse a Joao Goulart, vice-presidente legitimamente eleito, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961. Goulart acabou sendo empossado, mas com os poderes reduzidos por força de uma emenda parlamentarista aprovada às pressas, como uma solução de compromisso negociada entre a força golpista que tinha as armas e o establishment político que representava a sociedade desarmada.
Através de um plebiscito, o pleno poder presidencialista foi devolvido a João Goulart, que 3 anos depois acabou sendo deposto por um movimento militar, que se estabeleceu no poder pela força e lá permaneceu durante mais de 20 anos. Esse é o clássico golpe.
Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito diretamente pelo povo depois de duas décadas de ditadura militar, renunciou depois que o parlamento aprovou o pedido de abertura de um processo de impeachment contra ele por crimes de corrupção. Este não foi o clássico golpe, mas um movimento legítimo baseado em preceitos constitucionais devidamente sancionados pelos poderes da República.
Chamar de “golpe” as intenções de setores da sociedade representados por partidos de oposição de pedir a abertura de um eventual processo de impeachment contra a presidente Dilma Roussef, se houver suficientes e comprovados motivos para isso, não passa de um “deslizamento de sentido”.
A hipótese de abertura de processo de impeachment por crimes de responsabilidade está prevista na Constituição, e nenhum procedimento baseado em preceitos constitucionais pode ser chamado de golpista. Isso seria uma grave incoerência semântica.
A retórica da luta política não está lá muito preocupada com coerências semânticas. Não é por outra razão que palavras como “austeridade” e “meritocracia” foram despidas de seus sentidos originais e passaram pela devido processo de demonização, e tiveram seus significados originais invertidos para representar não processos virtuosos mas a encarnação do próprio mal.
O mesmo acontece com a banalização da palavra “fascismo”, que deixou de descrever a devoção a uma ideologia totalitária com foco no poder hipertrofiado do Estado e de um líder iluminado – um duce, um fuhrer – para tornar-se um xingamento de moleques de rua brincando de unha-na-mula.
Palavras, palavras…
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 10/7/2015.
O país dos golpes — incruentos ou justificados – desapareceu, não existe mais. Todos os golpes se parecem — são cruéis, injustificados. Mesmo como figura de retórica. Se o sistema político não consegue contornar impasses com a esperada agilidade, em algum momento aparecerão as condições e, sobretudo as lideranças, capazes de superá-los.
Golpe é uma hipótese maldita – para não ser aventada nem mencionada.