Era eu. Numa mão um livro, na outra uma metralhadora Vigneron. O livro era pequeno e vermelho. Boa para a guerrilha urbana, a metralhadora fora recuperada à FNLA, diziam-me os camaradas. Nunca a disparei, se me desculpam começar a crónica com um anticlímax.
Tinha 21 anos e o monopólio dos sonhos. Estava na pequena cidade do Lobito, Terra do Sol, e julgava saber, como nos filmes revolucionários de Glauber Rocha, quem era Deus e o Diabo. Deus era a liberdade, a independência, que é o que faz de um povo um povo.
A independência tinha a cara que Pasolini deu ao Cristo de Il Vangelo Secondo Matteo, grandes olhos de fogo a brilhar na cara negra. E eu tinha a cara parva, hippie, óculos de massa tenra, que faziam de mim o típico intelectual que veio dar cabo disto tudo.
Não vinha sozinho. Se bem se lembram, basta ver o Mississippi Burning, estes miúdos nunca vêm sozinhos. Eu dava literatura, o meu amigo Rui matemática. Com um generoso monge beneditino e com três professoras, uma delas com a godardiana doçura de uma Anne Wiazemsky, demos guita ao Liceu e o Liceu voou. Em liberdade e revolução.
A nossa era uma revolução entre a anarquia de Weekend e a contradição de classe (e raça) de Prima della Rivoluzione. Paredes de apartamento decoradas a Herberto e Ramos Rosa, festas ao fim-de-semana, para compensar as turbulentas idas aos bairros negros, a convencer fiéis da UNITA de que a independência era o MPLA quimbundo, que eles abominavam – dois miúdos brancos, no meio do musseque, a pensarem que eram António das Mortes contra o dragão da maldade.
Em Luanda, governo de transição, o ministro da Educação, da UNITA, convocou-nos. Fomos. O ministro tinha a bonomia dos gordos. Mas o caso já vinha nos jornais e queria dar o exemplo. Gritou-nos: “Eu sei! Vocês são do MRPP e só vieram cá fazer merda.” Ora, se a merdice era matéria de opinião, a parte do MRPP era mentira: tentei provar que éramos locais e free-lancers. Não me deixou: “Pago-vos as malas e mando-vos para o Puto.**” Viu logo que a sugestão turística não colhia. Recorreu à Constituição e à vontade popular: “O povo já está a ficar fodido convosco…”
Confesso, o ministro não me pareceu o Diabo. E nós confirmámos o que suspeitávamos: não éramos Deus, nem sequer o Cristo silencioso e redentor de Pasolini.
** – Puto era a forma, amena e carinhosamente diminutiva, como se chamava a Portugal, em Angola.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.