Às vezes, e devo reconhecer que é com alguma freqüência, me entusiasmo um pouco demais nas conversas com Marina.
Foi a Mary que reparou que, muitas vezes, eu dano a falar coisas compriiiidas para a pequena, que está hoje com 2 anos e 7. Eu nem percebia isso. Agora, depois que a Mary falou tanto, já percebo, claro.
Mas perceber o fato não me fez mudar de comportamento. Acho que a verdade é que eu adoro essas minhas conversas com ela. Acho que tem algum sentido, e continuo com os papos compriiiiidas que não acabam nunca.
A reação dela, quando o avô dana a falar essas histórias sem fim, é uma absoluta maravilha. Marina fixa os olhões em mim. Nem pisca. Presta uma atenção danada, e faz questão de demonstrar que está prestando uma atenção danada.
Ela ouve, analisa, e conclui.
Dias atrás, eu expliquei para ela que aquela ferramenta de consertar o carrinho que a vovó comprou se chama chave inglesa. Ela pensou, pensou, e concluiu: “A Nina fala inglês!”
Nina é a grande amiga dela desde sempre, filha do Dani, amigo do pai dela desde sempre, e de Sarah, americana de Minnesota, a terra de Bob Dylan. Nina fala inglês, e Marina ouve, analisa, soma uma informação com outra, e conclui.
Na segunda-feira expliquei pra ela longamente sobre o horário de verão. Uai, alguém tinha que explicar pra menina por que de repente ela tem que sair do parquinho e ir jantar se ainda está o maior sol!
E hoje fiz uma dissertação sobre a Holanda. Quer dizer, não é bem assim, mas é quase.
Fui netar com uma camiseta que a Mary trouxe de Amsterdã pra mim, cinza, com um desenho laranja na frente. Gosto de vestir camisetas com desenhos quando vou netar – Marina repara neles. Marina repara argutamente em cada detalhe, é impressionante.
Durante o jantar, eu dando a comida, Marina começou a olhar atentissimamente para minha camiseta. E aí fiz o papo comprido. Falei: lembra, Marina, que a vovó trouxe pra você de presente aqueles tamancos da Holanda? E eles eram laranja? Pois é. Esta camisa aqui do vovô também é um presente da vovó, que ela trouxe da Holanda. E, veja, esse desenho aqui é laranja, da mesma cor que os seus tamancos, porque o laranja é a cor da Holanda.
Juro que não contei pra ela sobre a Laranja Mecânica, o Carrossel Holandês, o time de Johann Cruyff que na Copa de 1974 moeu quase todos os adversários, em especial a Seleção Uruguaia do então são-paulino Pedro Rocha. Juro que não entrei nesses detalhes.
Nem falei da forma libertária com que a Holanda convive desde há muito com o direito ao aborto, à morte com dignidade, ao consumo de drogas.
Marina prestou uma danada de uma atenção para o meu discurso, os olhões imensos, lindérrimos, que herdou da mãe e da avó Suely fixos em mim, sem sequer piscar. Ao fim da looooonga fala do avô, virou-se pra Cau e pediu: – “Cau, eu quero ver DVD com o sapato laranja que a vovó me deu”.
***
Quem achar que estou torturando Marina não sabe de nada. Quando a mãe dela não tinha nem dez anos, a levei para ver as 2 horas e 44 minutos de Passagem para a Índia, do mestre David Lean, no abençoado Cine Astor. Amigos meus quiseram me denunciar ao pessoal do Tortura Nunca Mais.
Mas Fernanda gostou de Passagem para a Índia!
Bem, a rigor, não sei se Fernanda gostou de Passagem para a Índia daquela primeira vez que viu o filme, carregada pelo pai. Mas a verdade é que cresceu sendo uma pessoa atenta ao mundo, que sabe observar, sabe ouvir. Ao contrário do pai, talvez mais como a mãe, ouve mais do que fala. É a criatura que mais admiro na vida.
E as indicações são todas de que a filha dela herdou suas qualidades.
Outubro de 2015
A paciencia Marina herdou da mae Fernanda, com certeza.
Hoje em dia estão recomendando que se leia até para recém-nascidos. Há médicos ingleses que até vão mais longe: que a mãe leia para o bebê ainda em sua barriga! Portanto, acho que o papo comprido do avô só fará bem à Marina, que vai ampliando seu vocabulário e seu conhecimento com alegria, posto que vêm de seu querido avô. Adorei a associação da chave-inglesa com a amiga Nina. Mas nem tudo são confettis neste meu comentário: levar uma criança para ver Passagem para a Índia, que horror! É um filme que faz mal até para adultos, de tão pesado que é… Tomara que os pais da Marina não permitam que ela vá ao cinema com seu avô maluquinho! Encerro este discurso com um beijo para toda a família da Marina, com uma beijoca especial na linda menininha.
Delícia, Marina Helena, delícia!
Muito obrigado.
Sérgio