Fui colega de trabalho do pai do famoso garoto Pedrinho, aquele bebê sequestrado dentro da maternidade de um prestigado hospital particular de Brasília.
Para quem não se lembra do caso, a sequestradora, disfarçada de enfermeira, retirou o menino do hospital dentro de uma sacola e o levou para Goiânia. Só foi descoberta e presa 16 anos depois, ocasião em que a polícia constatou que ela também havia sequestrado e criado outra menina.
Aliás, eu estava na casa do pai do Pedrinho, completamente cercada de repórteres, no dia em que o teste de DNA do menino deu positivo. O meu colega dava pulos de alegria.
Mas, por que, afinal, começar a história da minha fuga da UTI lembrando do sequestro? É só para vocês terem uma boa idéia do rigor com que os acessos e saídas desse hospital passaram a ser vigiados por guardas e câmeras desde então. Pois foi exatamente dele que eu, internado na UTI, resolvi fugir para comer um sanduíche e um chocolate do outro lado da Avenida W3 Sul.
Fui parar lá por causa de uma tremenda dor no peito e no braço esquerdo, acompanhada de pressão arterial a 22 por 12. Parece que eu só estou vivo hoje porque a UTI Móvel do plano de saúde chegou imediatamente, me conectou a uns aparelhos e atravessou a cidade em disparada.
A chegada ao hospital não foi nada tranquilizadora: quase tive um ataque cardíaco ao ouvir um médico cochichar para minha mulher que eu precisava ir urgentemente para a UTI, pois estava prestes a sofrer um enfarte.
Minha estréia em UTIs foi bem a caráter, ligado a um monte de fios, tubos e aparelhos, que ficavam fazendo aquele clássico barulhinho pi!, pi! pi!, com umas luzinhas piscando, exatamente como a gente vê nos filmes. Passei a primeira noite acordado, com medo de morrer dormindo.
O stress e a falta de janelas não me deixavam ter noção exata do tempo decorrido. Mas, finalmente, consegui relaxar, brincando com médicos e enfermeiras em plena madrugada. Eu era o único paciente acordado e falante. Eles formaram uma rodinha em torno da minha cama e ficaram tirando dúvidas sobre as regras de tributação de bagagens na alfândega ou as de importação pelos Correios. Me lembro que falava incessantemente, contava alguns “causos” da profissão e ouvia algumas histórias de UTI. Minha adrenalina ainda estava a mil.
Até hoje não perdôo aqueles sádicos de jaleco branco por me deixarem horas e horas sem comer nada. Em vez de comida, minha pobre barriga recebia seguidas injeções de anticoagulante. De sobremesa, um eletrocardiograma. E isso bem no horário em que eu costumo assaltar a geladeira de madrugada.
Muitas horas depois, falei seriamente para uma enfermeira: “estou começando a achar aquela caixa de luvas cirúrgicas muito apetitosa. Se vocês não me derem nada para comer, vou me atracar com ela e ninguém toma”. Trouxeram uns miseráveis 250 mililitros de uma sopinha aguada, o que me deixou ainda com mais fome. E me convenceu definitivamente de que devemos evitar a todo custo sofrer piripaques cardíacos de estômago vazio.
O outro lado da questão era o espanto dos médicos ao verem um sujeito sentir fome numa situação dessas. Provavelmente o manual deles diz que e isso não deveria acontecer, por causa do stress do paciente.
Um motim contra a qualidade e a quantidade da comida estava fora questão. Eu era o caçula da UTI e os meus vizinhos, todos muito velhinhos, sedados ou entubados, não demonstravam qualquer interesse nessas questões ligadas ao cardápio.
Pelos menos duas vezes tive a impressão de ouvir um pi!, pi!, pi! se transformar em um longo piiiiiiiiiiiiiii!.
Nesses momentos, fechavam a cortina circular em torno da minha cama e eu ouvia uma movimentação intensa.
Entre as dezenas de saídas para exames, a mais assustadora foi para um tal de cateterismo, numa sala escura. Na entrada, vi de relance os olhares preocupados da minha mulher e do meu irmão, Sérgio. Ao perguntar, temeroso, quando iriam começar o exame, o médico sorriu e me informou que o exame já havia terminado há meia hora. Espetaram um tubo na minha virilha, cutucaram minhas coronárias, me filmaram por dentro e eu nem notei.
O diagnóstico foi que eu não tinha nenhum encanamento entupido e nem sinal de estreitamentos, coágulos ou gordura nas artérias. Ora, então, que diabos eu estava fazendo alí numa UTI? O médico explicou que um sujeito ansioso como eu, mesmo com as veias e o coração em bom estado, pode ter um ataque cardíaco causado apenas por stress. Muito animador.
Pelo menos a tal embolia pulmonar, que aconteceu junto com o risco de enfarte, estava sendo revertida, e a pressão arterial começava a se estabilizar.
No outro dia, de maneira cuidadosa, ressaltando que eu não tinha nenhuma obrigação de aceitar, perguntaram se eu concordaria em ir para uma tal de UTI B, para ceder a vaga da UTI A para um sujeito que havia chegado em situação crítica.
Na UTI B, que é semi intensiva, a maior parte da aparelhagem médica fica no corredor, em frente aos quartos, para qualquer emergência. E o paciente ocupa um quarto individual, com direito a acompanhante. Topei na hora. Mas a detectei um certo clima de suborno na argumentação deles de que o cardápio lá ia ser menos restritivo, incluindo pão com manteiga no café e goiabada na sobremesa. Eu não iria deixar o outro cara morrer. Mesmo sem goiabada.
O bom dessa mudança e dos resultados dos exames foi poder organizar, com meus sobrinhos, uma rota de contrabando de comida. Minha mulher também trouxe delícias obviamente proibidas de um restaurante árabe. Após esfihas, quibes, tabule e kafta, eu nunca mais conseguiria comer a miserável refeição do hospital.
Do contrabando para o plano de fuga foi um pulo. O cardápio poderia ser melhorado clandestinamente, mas o que incomodava mesmo era a absoluta falta do que fazer, rotina da espera pelo horário dos exames, pelos resultados e a vontade de ir para casa.
A idéia da fuga surgira exatamente no momento da mudança para a UTI B, quando minha cúmplice involuntária, uma auxiliar de enfermagem, apareceu no quarto com um saco plástico lacrado. Era a roupa que eu usava ao chegar ao hospital. Camisa pólo, tênis e bermuda. Era provocação demais. Tenho por hábito sempre deixar um cartão do banco num bolsinho das minhas bermudas, fechado com velcro.
A rota de fuga não era desconhecida para mim. Por causa do convênio com a Receita Federal, eu já tinha percorrido diversas vezes os corredores daquele hospital, acompanhando consultas, exames ou internações do meu sogro e da minha sogra. Assim como eu e minha mulher, eles também ganharam a vida cobrando impostos ou combatendo o contrabando.
O plano era muito simples: bastava atravessar, sem ser notado, o longo corredor dos quartos, ocupado por pelo menos 15 técnicos e enfermeiros. Eles ficavam, em sua maioria, sentados de frente para as paredes, checando prontuários e os monitores com os dados dos pacienes da UTI B.
Os próximos passos seriam enganar o segurança em frente ao elevador e passar pelos outros guardas postados nos vários corredores e na saída. Por fim, sacar algum dinheiro no banco e comprar o meu sanduíche e o meu chocolate.
O sucesso da fuga somente seria completo se os seguranças me deixassem subir de volta para o quarto.
Ao levantar os dados sobre o inimigo, descobri com uma enfermeira que um fujão anterior havia sido capturado e devolvido pelo gerente do supermercado situado do outro lado da Avenida W3. Também, pudera! Foi encontrado futucando as prateleiras, vestido com o bandeiroso pijama do hospital, sem um tostão no bolso. Coisa de amador panaca. Não perguntei, mas provavelmente isso aconteceu antes do sequestro, quando a circulação de pessoas era menos monitorada. Mesmo assim, ser descoberto como o amador panaca me tornaria eternamente alvo das gozações dos colegas no trabalho.
Logo concluí que, além de roupas e dinheiro, eu precisaria de um cúmplice. Minha mulher, com certeza, denunciaria meu plano. Meus dois irmãos também iriam colaborar com o inimigo. No dia em que o sobrinho Serginho, de 16 anos, era o acompanhante, revelei o plano de fuga e o nomeei meu cúmplice oficial. A princípio, ele recusou a honraria e arregalou os olhos. Mas, depois, como todo adolescente, achou que poderia ser divertido. A minha primeira ação foi confiscar o crachá de acompanhante pregado na camisa dele.
Como o turno dos funcionários era de 24 horas de trabalho por 72 de folga, as próximas equipes de enfermagem e de segurança não teriam como me conhecer ou saber se eu era paciente ou acompanhante, pois eu era calouro na UTI B.
Decidi fugir por volta da hora do almoço. Tinha pouco mais de uma hora para ir e voltar, antes da visita médica das 14h. Depois de tanto stress, essa molecagem era a minha maneira de zombar um pouco da morte, comemorar o resultado dos exames.
Orientei meu sobrinho a ligar o chuveiro quente um pouquinho a cada 15 minutos, para embaçar a porta de vidro do banheiro. A funcionária encarregada da entrega do almoço não iria se interessar muito por mim. E ele só deveria responder que eu estava no banho caso fosse perguntado.
Passei caminhando firme pelo corredor, por trás dos funcionários e médicos de olho nos monitores ou falando ao telefone. Falei bom dia para o guarda do elevador. Ele olhou para o relógio, sorriu e disse que já era boa tarde. Entrei no elevador e dei tchau.
Os outros guardas não deram a mínima bola para aquele sujeito de bermudas e crachá. Provavelmente estavam mais interessados em pessoas entrando do que saindo. Ou em senhoras com sacolas grandes o suficiente para esconder um bebê.
Atravessei as movimentadas pistas da W3 Sul, saquei dinheiro no banco e fui comer na lanchonete do supermercado. O mesmo visitado pelo panaca amador. Achando que não seria muito honesto um paciente de UTI, mesmo sendo do B, pedir um hambúrguer com fritas e Coca-Cola, comi um sanduiche light acompanhado de suco com adoçante. Em seguida, passei na lanchonete situada em frente ao estacionamento do hospital e comprei o meu sonhado chocolate.
A subida de volta foi bem menos tensa, com várias pessoas no elevador usando o mesmo tipo de crachá. Dei de cara com o meu almoço gororoba na mesinha do quarto.
A única parte até hoje inexplicável do meu plano foi a opção por comprar o chocolate na lanchonete do hospital e não no supermercado, onde havia maior variedade e preços menores.
Isso aconteceu em 2011. Meses depois, contei a história a alguns funcionários, mas ele não acreditaram em mim. Acharam que era brincadeira. Ou então foram gentis ao não dizer que muitos já fizeram isso e que eu não estava impressionando ninguém. Provavelmente fugir da UTI é para fracos. A vigilância é muito menor do que na maternidade. Mesmo porque a briga maior costuma ser para achar uma vaga na UTI, nunca para sair dela.
Impossível mesmo seria fugir de um outro hospital, localizado no Setor Hospitalar Norte de Brasília, onde eu tenho uma fama um pouco duvidosa. Durante muito tempo, toda vez que eu aparecia por lá, algum funcionário ou médico me reconhecia e comentava: “você não é aquele paciente que chegou aqui na emergência de UTI Móvel, depois de ter sido encontrado pela esposa, de calção rasgado, arfante, em cima da cama da empregada? É verdade mesmo que você caiu do telhado?”.
Sim, era eu. Mas eles sempre esquecem um detalhe: cheguei em duas e não em apenas uma UTI Móvel. Isso porém, já é outro capítulo da minha saga hospitalar, que vou contar aqui, qualquer hora dessas.
Outubro de 2015
Luiz Carlos Toledo é insistentemente convidado a se tornar colaborador habitual do 50 Anos de Textos.
Protesto! Luiz Carlos Toledo é colaborar ativo e constante, original e não compilado.
O rotulo de colaborador bissexto é certamente uma brincadeira.
Comeu o juízo com as esfirras e a kafta!
Comecei a ler e fiquei nervosa, só no final que vi que não foi por agora…
Miltinho, vou mexer então na última frase.
Um abraço.
Sérgio
Toledo, grande coisa que você fez, fugir de um hospital. A façanha, no País, não é sair, mas entrar no hospital. Esta semana mesmo o noticiário da TV mostrou a fila dos que tentavam entrar, e não conseguiam. Nem com crachá de outro, porque o outro também não entrou.
Ironia à parte, o texto estava ótimo, me diverti muito.
Valdir o país está na UTI nosso governo para fugir deveria consultar o Luiz Carlos Toledo, agora tornado emérito em 50anosdetextos.
Meus agradecimentos Sérgio.
Já conhecia essa história, mas narrada por escrito pelo Luiz Carlos, inclusive com lances onomatopeicos, transportei-me para o ambiente daquele nosocômio. Lembrei até de uma cena antológica do Richard Nicholson em, salvo engano, “Alguém tem que ceder” em que ele aparece metido numa bata hospitalar… rsrsrs muito bom, LC!