Viagem ao inferno bolivariano

Quem conheceu a Venezuela há 30 anos não a reconhece hoje, tamanhas e tão profundas são as mudanças na vida do país. Quando atravessei a fronteira pela primeira vez, o petróleo, cotado a preços estratosféricos, carreava bilhões de dólares para os cofres do governo e garantia uma fartura de produtos que chegavam do mundo todo. As importações só não eram maiores que a exportação do óleo cru que jorrava – e ainda jorra – das maiores reservas mundiais que se espalham pelo subsolo.

Essa farra levou a uma situação inusitada: praticamente nada era produzido em terras venezuelanas e importar era tão fácil como ir à feira.

Em janeiro de 1985, recém-chegado em Roraima como correspondente do Grupo Estado, fui o único jornalista brasileiro a cobrir, in loco, a primeira visita do papa João Paulo II à terra de Simón Bolívar. Em Ciudad Guyana – que reúne Puerto Ordaz e San Félix, divididas pelo rio Caroni – fiquei hospedado na casa de uma família venezuelana de classe média. Numa daquelas manhãs, dueña Sol, a matriarca, recomendou-me que, caso precisasse de algo, pedisse a Romita, como era chamada a baixinha Roma, uma das empregadas. Lá pelas 7, acompanhada de Nora, a governanta, saiu para o aeroporto a fim de pegar um vôo da Avensa direto para Miami onde, todo mês, fazia… supermercado!!! Preço da passagem, ida e volta: US$ 75!!!

Lá pelas 5 da tarde as duas estavam de volta, trazendo vários volumes na carroçaria de uma pick-up GM americana do ano, pilotada por Angel, o motorista da família. Trouxeram de tudo, de alimentos a produtos de higiene e limpeza e otras cositas más. Diante do meu espanto, Oscar, o patriarca, dono de uma rede de lojas de produtos elétricos, me explicou, entre um gole e outro de Pampero, o melhor rum venezuelano que conheci, que a rotina da mulher era comum a milhares de venezuelanos da próspera classe média alta.

Então pude perceber que aquele era um tempo em que, pontilhado por tantas e tamanhas facilidades, o povo nem ligava para os descalabros que se sucediam nos gabinetes do Palácio Miraflores em Caracas. A corrupção corria solta e marcou principalmente as gestões de Carlos Andrés Pérez.

Embora para os olhos mais atentos a gastança indicasse perigo num futuro próximo, pois ninguém fica impune a tanto desvario, a Venezuela era também para nós, brasileiros de Roraima, um paraíso. Santa Elena do Uairén, vizinha a Pacaraima, se tornara um grande supermercado. Era o auge do comércio formiga, acordo bilateral que permite a compra de até 300 dólares em mercadorias para consumo próprio nas cidades fronteiriças. Então, bastava sacolejar durante três horas por uma estrada de terra, esburacada e repleta de “costela de vaca” – hoje 2 horas rodando no asfalto – entre Boa Vista e o BV-8 (marco no 8 fincado pelo marechal Rondon da fronteira Brasil-Venezuela) para fazer o rancho, como se diz por aqui. Viajar para o Caribe, então, era uma baba. Com o litro da gasolina custando centavos de bolívares e com a moeda venezuelana valendo, no paralelo, cem vezes menos que o real, eu mesmo gastei R$ 30 para atravessar o país de carro em janeiro deste ano para ir de férias com a família à Ilha de Margarita, no Caribe.

Hoje já não dá mais para sequer ir a Santa Elena. Recentemente, duas brasileiras – Luciana Pereira e Lousineide Sousa Silva – não sabiam que estava proibido fazer compras de gêneros alimentícios em Santa Elena e acabaram presas, acusadas de contrabando, indo parar numa cela imunda em Puerto Ordaz. É que, desde setembro, um decreto do presidente Nicolás Maduro proíbe a exportação e transporte de mercadorias para territórios estrangeiros. Ou seja, à revelia da Assembléia Nacional, que referendou o acordo bilateral juntamente com o Congresso Nacional brasileiro, o caudilho bolivariano jogou o comércio formiga no lixo.

Nesta visita a Puerto Ordaz, mesmo vigiado pelas milícias bolivarianas, organizadas com orientação de consultores cubanos para fazer o trabalho sujo da caguatagem, consegui investigar algumas denúncias que me passou Alberto Robledo, filho de Oscar e doña Sol, meus anfitriões em 1985, que conheci ainda meninote na minha primeira viagem a Ciudad Guyana. Juiz aposentado precocemente por conta das sequelas deixadas por assaltante de estrada quando ia de Puerto Ordaz para Ciudad Bolívar presidir uma audiência, tornou-se duro crítico do tal de socialismo do século XXI e do inferno bolivariano criado por Hugo Chávez e consolidado por Maduro.

Tive longas conversas com ele na mesma casa em que cresceu em Alta Vista e onde me hospedou no mesmo quarto de há quase 30 anos. Aqui neste espaço irei mostrar mais detalhes da situação que vive a República Bolivariana de Venezuela, onde médicos são perseguidos por reportar a morte de pacientes vítimas da violência das forças de segurança e advogados processados por prestarem assistência jurídica a seus clientes. E juízes, se quiserem continuar na magistratura, são obrigados a prolatar sentenças conforme a orientação dos tribunais superiores. A lista é grande.

O autor é jornalista em Roraima

3 Comentários para “Viagem ao inferno bolivariano”

  1. Com a palavra Plinio. Aguardamos ansiosos pelos próximos textos. Enfim teremos um retrato do bolivarismo.

  2. Plínio
    .
    Se eu fosse a Folha ou o Estado, ou o Globo, compraria seu material como frila. Você ofereceu? Já publicou na imprensa? Espero pelos próximos capítulos.

  3. Bem, abordar os vícios da atual Venezuela não é um problema. O que é lamentável é ignorar os fatos relatados no site do jornal “Le Monde”, que eu suponho ser conhecido pelo autor do texto.

    [o Le Monde Diplomatique não é o Jornal da CUT, nem é o Granma]

    O Plínio é saudoso de uma Venezuela onde cerca de 80% da população era analfabeta – e, provavelmente, também miserável. Os produtos estavam nos supermercados, havia abastecimento, mas o cidadão de bem se limitava a comprar apenas ovos ou algo assim.

    O venezuelano comum nem pensava em comprar queijos Roquefort ou outros artigos fartamente disponíveis e abastecidos em Caracas.

    Bem, a minha irmã esteve em Caracas, nos Anos 90. O centro da cidade lembrava Nova Iorque (é assim que eu escrevo o nome da cidade. Perdoem), mas os prédios com fachada de vidro em Caracas estavam mui próximos a grandes favelões montanhosos (uma espécie de Morumbi que fala español). Favelas habitadas por pessoas que jamais se beneficiaram com o abastecimento de Miami.

    Quando os partidos tradicionais (AD, COPEI) usavam os petrodólares da PDVSA e os enviavam a contas obscuras em Miami, Jersey etc., não havia nenhuma reclamação pelo jornalismo do tipo Veja. Afinal, a Venezuela estava “no camanho certo”. Reclamar do quê?

    O Sr. Plínio, não podendo elogiar a velha Venezuela, se limita a relatar a vida mansa de país petroprodutor das classes A e B.

    Eu, quando falo de um país, refiro-me à coletividade, e não a um pequeno grupo que trazia supositórios de Orlando.

    There’s a video called “The elegance that was Cuba”, exposing yankee propagandas about a country ruled by Fuldéncio Batista until 1959.

    In the future, the same author will make another video, called “The elegance that was Venezuela”, talking about a miserable-charming petro-country. Enjoy it!

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