LETHEM, REPÚBLICA DA GUIANA – O motorista de primeira viagem estranha ao dar de cara com a mudança logo depois da ponte Olavo Brasil, construída sobre o Tacutu, rio que demarca a fronteira entre Brasil e a Guiana. No fim da cabeceira, dentro do território guianense, o trânsito muda de mão, com tráfego pela esquerda, coisa que a grande maioria dos roraimenses (e dos demais brasileiros) só conhece pela TV e pelo cinema.
Quase sempre a estranheza passa logo, superada com as facilidades trazidas pela obra, presente de US$ 50 milhões do então presidente Lula ao governo da ex-colônia inglesa. Além de eliminar a balsa e permitir uma travessia segura no final da BR-401, ela está levando a pequena cidade fronteiriça de Lethem, 130 km ao norte de Boa Vista, a se transformar, cada dia mais, numa espécie de novo Eldorado dos consumidores do Estado de Roraima.
Quem antes ia a Santa Elena do Uairén, que por muitos e muitos anos foi a meca do consumo dos moradores daqui, hoje foge da instabilidade política e econômica e da insegurança da também vizinha Venezuela. Mesmo com o câmbio favorecendo os brasileiros devido à acelerada desvalorização do bolívar, a carestia é assustadora. Produtos que há até bem pouco tempo abasteciam todos os meses as despensas boa-vistenses sumiram das prateleiras e percorrer os 436 km da BR-174, na ida e na volta, já não compensa.
Hoje, está mais fácil andar 260 km pela BR-401, indo a Lethem e voltando. Os preços e a variedade de importados valem a viagem e o câmbio, com o real valendo 120 dólares guianenses no paralelo, é uma facilidade a mais.
Os muitos comerciantes chineses fugiram de Santa Elena, da instabilidade e do desabastecimento, e levaram seus supermercados e lojas para a cidade fronteiriça guianense. Acabaram atraindo também outros empresários, do Brasil, da Guiana e de Suriname. Então, assim que começaram a abrir as portas, e seguindo o que fizeram na Venezuela, deram boas vindas agradecendo a fidelidade de seus fregueses: “Open. Welcome and thank you”.
Mas é preciso tomar cuidado e evitar exageros. “Piratas” trazidos da China são a razão maior de a fiscalização brasileira agir com rigor no posto da alfândega na fronteira.
A migração dos consumidores para Lethem tem sido a força motriz que está levando à expansão da atividade comercial da cidade. No entanto, apesar de uma considerável transformação ao longo dos últimos oito anos, seu rápido crescimento trouxe também uma série de problemas. Um deles é a crônica deficiência do fornecimento de energia elétrica, cujo sistema não é nada confiável, e outros são os precários serviços de abastecimento de água e a ausência de saneamento básico. O projeto de uma hidrelétrica, que seria financiada por Brasil e Venezuela, foi paralisado por causa da crise econômica que atingem os dois países.
A presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Lethem, Jacqueline D’Aguiar, reconhece que a parceria entre brasileiros e guianenses tem fomentado o crescimento da área comercial do ainda distrito de Georgetown, capital da Guiana. Isso está claro quando o visitante se depara com os complexos comerciais já em funcionamento, como Pacifico, R & R Hardware, Savannah Inn, Centro Comercial Tacutu e China-América Star, lojas de megaempresas que formam a representação da comunidade empresarial, além de outras tantas construções em andamento.
D’Aguiar disse que a situação hoje é bem diferente do que ocorria há cerca de 30 anos, quando os guianenses viajavam a Boa Vista para comprar todo tipo de produto. Hoje, ao contrário, são os boa-vistenses que vão a Lethem fazer compras. Essa frequência de brasileiros, entretanto, está criando um problema monetário para o governo, conta D’Aguiar: “Como os compradores são principalmente brasileiros, as lojas aceitam pagamento em real. O problema é que as importações são pagas em dólares americanos e no mercado interno compramos e vendemos em dólares guianenses. Então, o excesso de reais, que não é conversível, é um problema que estamos tentando resolver”, ressaltou.
Em recente visita a Lethem, Gail Teixeira, conselheira especial do presidente da Guiana, Donald Ramotar, anunciou o início da construção, nos primeiros meses de 2015, da rodovia ligando a cidade a Georgetown, promessa feita em 2010 por Luiz Inácio Lula da Silva ao então presidente guianense Bharrat Jagdeo e que recebeu a garantia de Dilma Rousseff. Quando concluído, o trecho da estrada irá reduzir significativamente o tempo de viagem entre Lethem e a capital, hoje entre 12 a 13 horas, tornando mais econômico e mais ágil o transporte de passageiros e cargas. A pavimentação da estrada também irá beneficiar o agronegócio, que na Guiana já conta com produtores brasileiros que, expulsos da área indígena Raposa/Serra do Sol, estão explorando extensas plantações de arroz nas várzeas do rio Rupununi.
Lethem guarda resquícios bem visíveis da colonização inglesa. Os carros têm o volante do lado direito e a mão do trânsito, como nos países de colonização britânica, é invertida. Alguns casarões assemelham-se às edificações existentes nas áreas rurais do Reino Unido. Mas a semelhança da pequena cidade com a nação colonizadora não vai muito além.
A atividade garimpeira é um componente importante na economia da Guiana e que se estende também à região, mas o que move a cidade é o comércio. Não só o legal, mas também o pirata – o contrabando e o ouro. Quem sustenta as vendas são as grandes lojas, com seus galpões entulhados de mercadorias produzidas em massa na China.
Por isso, nos supermercados e lojas os brasileiros, principalmente os de Roraima e do Amazonas, encontram-se todo tipo de produtos piratas. Como os diversos modelos imitando bolsas Louis Vuitton que não custam mais de R$ 50. Falsdaws camisas Lacoste, incrivelmente parecidas com as originais, custam entre R$ 7 e R$ 15 dependendo do modelo. E assim vai: tênis All Star, de R$ 35 a R$ 40; casaco Adidas, R$ 45. Impressiona a variedade e quantidade de perfumes, roupas e equipamentos de dezenas de marcas famosas. Tudo made in China.
Na conversa com fiscais da Receita Federal brasileira no posto da fronteira, próximo à ponte internacional, foi possível saber extra-oficialmente que o total movimentado por mês pelo comércio pirata em Lethem chega facilmente a US$ 6 milhões ou até mesmo a US$ 7 milhões no final de cada mês, quando são pagos os salários dos funcionários públicos federais, estaduais e municipais em Boa Vista. Quanto à produção e o contrabando de ouro, o pessoal da Receita não tem estatísticas disponíveis, pois o minério é atravessado longe do posto e da vigilância da Polícia Federal.
Do lado guianense não há nenhuma fiscalização, nem na saída nem na entrada do país. No lado brasileiro a fiscalização é bem rigorosa. Na Alfândega, em Bonfim, cerca de 150 bagagens passam diariamente, em média, pela aparelhagem de raios-X. Entretanto, a presença dos agentes da Receita não inibe os contrabandistas. Aproveitando-se das facilidades oferecidas na travessia do Tacutu, alcançam com seus barcos a margem brasileira a não mais que a 50 metros de distância. Depois, usam os desvios espalhados pelo lavrado para fugir à fiscalização da Polícia Rodoviária Federal. Por fim, atravessam o Rio Branco em pontos de difícil acesso e descarregam suas cargas na preferia de Boa Vista.
Com essas facilidades, não só o ouro circula no mercado roraimense. Já é comum encontrar produtos chineses que inundaram lojas, supermercados e feiras misturados aos importados legalmente com a utilização dos benefícios fiscais concedidos pela Área de Livre Comércio. Um dos exemplos dessa inundação foi revelado recentemente pela Polícia e Receita Federal. Os agentes e fiscais apreenderam cerca de 20 toneladas de alho trazido de Xangai, estocadas no depósito de um atacadista. Produto da melhor qualidade, muito superior ao similar nacional, e vendido pela metade do preço.
Novembro de 2014.
O autor é jornalista em Roraima.
As fotos são de JPavani.
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É tão útil essas informações, principalmente para quem não conhece e deseja conhecer. Seria muito bom se houvesse mais informações sobre a Região até mesmo para os brasileiros de outra Regiões do país conhecer a nossa vizinhança. Eu moro em Rondonia e quando vou para o nordeste as pessoas falam que Rondonia é longe demais.Ai eu falo depende a que você se refere, pois fica perto da Bolívia, do Peru, de Manaus etc.