É bem possível que no coração de toda a besta se esconda um lírio. Não sei. Mas sei que, ainda a guerra não estalara, Hitler convidou Raoul Walsh a visitar Berlim. Walsh, irlandês, católico, rijo a filmar homens, estava em Londres, a convite de W. R. Hearst, patrão dos jornais e investidor no cinema americano. Meteu-se no avião e ala.
Os nazis queriam que Walsh lhes fizesse um filme. Mostraram-lhe a UFA, os estúdios que tinham sido um dos orgulhos germânicos, já a cair da tripeça. Deram-lhe como companhia duas alemãs, matissianas digo eu, com as quais o realizador tomou mesmo o pequeno-almoço. Mas ninguém, nem as duas alemãs, lhe conseguia explicar que raio de filme os nazis queriam. Levaram-no a almoçar com Himmler. A meio do repasto veio Hitler. Apresentaram-lhe Walsh, como um grande amigo de Hearst. Bastou para que Hitler lhe apertasse com vigor a mão. Do filme, nada.
Outro dia, outro almoço, agora com Goering, essa flor de estufa. Goering mostrou-lhe a sua colecção de pintura: Rembrandt, Van Dyke, Monet, um singelo Donatello. (É que é só arte. Esta gente devia passar as noites a ler Proust!) E já estamos a ouvir Goering: “Mas esta colecção é um grão de areia comparada à de Hitler. A ele só lhe falta um retrato do general Von Steuben que é do seu amigo Hearst. Será que ele o vende ao nosso amado Führer?”
Qual seria o retrato desse general alemão que se bateu na guerra da Independência americana? O mais institucional de Ralph Earl ou o que Charles W. Peale lhe fez, poseur, tão gracioso quanto gracioso um prussiano possa ser?
Tanto faz. Walsh sabia o que os caixotes de Citizen Kane confirmam, que Hearst nunca largava nada que comprasse. Pior, a Hearst doía-lhe no sapato um pedregulho alemão. Durante a I Guerra comprara oito colunas gregas clássicas para decorar uma piscina. Metera-as em dois cargueiros e, no Atlântico, um submarino alemão mandou um barco e quatro colunas para o fundo do mar. “Senhor Goering — disse Walsh — os senhores vão ao fundo do Atlântico buscar as quatro colunas de mármore e, em troca, o meu amigo Hearst dá-lhe o quadro de Von Steuben.”
Já ninguém mais apertou a mão ao irlandês. Avião para Londres no dia seguinte.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.