O indestrutível vírus da liberdade

Os cubanos perceberam que havia alguma coisa fora do comum acontecendo quando grupos de pessoas começaram a juntar-se na rua em volta de aparelhos de TV. E não era jogo da Champions League.

Era uma transmissão da rede Telesur e Raúl Castro, com ar grave, lia um papel. Em seguida apareceu Obama dizendo que “somos todos americanos”.

A primeira impressão era de que os dois presidentes estavam anunciando a troca de três cubanos presos nos Estados Unidos condenados por espionagem por um americano preso em Cuba sob a acusação de “conspiração contra o Estado”.

O tema dos cinco cubanos presos é uma obsessão propagandística do regime. Não há rua em Havana sem um outdoor com o rosto dos cinco “heroes de la lucha contra el imperialismo yankee”.

Os regimes totalitários, como lembrou Yoani Sanchez, levam uma vantagem sobre as democracias: eles podem dirigir a informação e a propaganda numa direção única, que atenda os interesses do regime. Elas intoxicam os corações e as mentes das pessoas com refrãos, palavras de ordem e slogans, mobilizam a população para marchas e passeatas, manipulam a opinião pública de acordo com as suas conveniências. Nas democracias, as autoridades precisam convencer a população e prestar contas de seus atos.

Isso fez com que a imprensa brasileira registrasse uma frase que Yoani Sanchez escreveu no seu blog- “os Castro venceram” – como uma reação ao anúncio do reatamento de relações diplomáticas. Na verdade, ela se referia à troca de três dos cinco cubanos presos pelo norte-americano Alan Gross, que o regime poderia explorar publicitariamente como “uma vitória”. Sobre o reatamento, dúvidas, esperanças e desconfianças.

Quando os cubanos entenderam que, entre outras coisas, Raúl e Obama estavam anunciando que a transferência de dinheiro dos cubanos exilados para os parentes que ficaram em Cuba seria facilitada, assim como as viagens, o acesso à internet e o comércio, houve algumas moderadas manifestações de alegria. Até algum “I love you, Obama” chegou a ser ouvido

O fim do embargo, o fantasma atrás do qual o governo cubano esconde a sua extraordinária ineficiência econômica, é um objetivo mais difícil. Embora seja um anacronismo histórico, sua derrubada depende do Congresso, onde ainda tem vários defensores, tanto democratas como republicanos.

Ele foi decretado em 1961 – antes mesmo da crise dos mísseis – como resposta à desapropriação de 800 empresas norte-americanas instaladas em Cuba sem pagamento de qualquer indenização e não por Fidel ter se declarado comunista, como muita gente prefere pensar. Se fosse assim, os EUA não teriam relações com China e Vietnã.

Essa decisão de “realpolitik” implementada por Raúl e Obama e mediada pelo Papa Francisco, aparentemente pode salvar Cuba da ameaça de um novo “período especial”, aquela fase de crise aguda que se seguiu ao fim da União Soviética e que poderia repetir-se com o definhamento da ajuda venezuelana, e ainda desperta suspeitas e rancores de lado a lado.

E os direitos humanos? E a perseguição aos dissidentes? E a luta contra o imperialismo? Quem está abrindo mão do que?

Apesar de todas as dúvidas, o anúncio Obama-Castro iniciou um processo de degelo. Esse tipo de processo, é inevitável, acabará abrindo fendas, por onde o indestrutível vírus da liberdade vai infiltrar-se, crescer como uma epidemia, e acabar resgatando, depois de mais de 50 anos, a dignidade do povo cubano.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 19/12/2014. 

2 Comentários para “O indestrutível vírus da liberdade”

  1. Qual seria a importância do Porto de Mariel para a epidemia de liberdade?

  2. Petrobras: sob a lei dos Estados Unidos?

    Quando o Governo FHC decidiu colocar a Petrobras sob a ordem jurídica dos EUA, nos anos 90, não nos demos conta do real problema que estava presente.

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