Está muito bem, devemos amar o próximo como a nós mesmos, prodigalizar-lhe festinhas e amenidades, mas uma suculenta e farta vingança, senhores! Olho por olho, decepar um braço, serrar uma perna a um inimigo, a um desses filhos da mãe que nos lixou a vida, que nos atirou os sonhos para a mais escusa das catacumbas, oh meu Deus, isso rejuvenesce o mais acabado e põe um capitoso champanhe nas veias do mais diluído dos seres humanos.
Quando Blue Ruin começa, é um desses diluídos e arrastados seres humanos que vemos. É um sem-abrigo e anunciam-lhe que libertaram da prisão alguém que, percebemos, tem que ver com o seu passado. Já vimos filmes de vinganças atrozes. Mas, nos olhos de um anémico e silencioso sem-abrigo, ver desenhar-se a nervosa palavra vingança, é um daqueles momentos em que o cinema nos dá o que a vida há muito nos tirou.
Os esplêndidos primeiros 20 minutos de Blue Ruin, no seu silêncio, na aceitação do tempo semi bucólico que se escoa, na inóspita imagem de um arruinado Pontiac azul onde um resto de homem vive miserável, mal nos deixam adivinhar a festa de maldade e sangue que aí vem. Dwight, o sem-abrigo, não vale a ponta de um corno, não tem energia para dizer duas frases seguidas. Mas a vingança entra nele e é um motor de combustão a quatro tempos que o põe em marcha. Não é, no entanto, nenhuma máquina de guerra, um Stallone, um Schwarzenegger. Dwight, como o carro onde vive, é uma ruína de homem e, mesmo a gasolina da vingança, não chega. Às vezes, Dwight só pega de empurrão e são esses momentos canhestros, de patéticos falhanços, que conferem a Blue Ruin um humor que roça a angústia.
Fazer o bem, ajudar a velhinha a atravessar a rua, pôr um pão numa boca com fome dá-nos uma alegria virtuosa, como se voltássemos a vestir o fatinho branco da primeira comunhão. Mas fazer o mal – e Dwight começa por fazer o mal rasgando a garganta ao odiado inimigo, dela fazendo brotar um Tejo, um estuário de sangue –, fazer o mal, dizia, é arrebatador.
Deixem que o cinéfilo que ainda há em mim acrescente: no cinema, fazer o mal é muito melhor do que fazer o bem. Já há algum tempo que não via, como agora vi em Blue Ruin, actos sórdidos, a mais ultrajante violência, os mais bárbaros crimes, parecerem tão visceralmente exaltantes. Levem as vossas amarguras ao cinema e deixem que elas se consolem nesta Ruína Azul.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordteo com a antiga ortografia.
Fazer o mal é instigante. O cinema já mostrou o mal de forma menos sanguinária. Um mal mais refinado. Atualmente balas, explosões, sangue e dilacerações retratam uma sociedade cada vez mais violenta.
Blue Ruin é filme para não ver! Mesmo que a vingança seja deliciosa.