Já uma vez aqui contei que Orson Welles, convidado para realizador, desconhecia a gramática cinematográfica e não teve vergonha de ir falar com os velhos cineastas. E disse que Welles foi ter com o melhor director de fotografia de Hollywood, uma competência técnica e artística que, fosse ele marujo, salvaria o Titanic. Disse e menti. Confesso, às vezes minto por me dar jeito.
O homem chamava-se Gregg Toland. Era um caixa-de– óculos por quem Ford, Hawks, Stroheim cortariam se fosse preciso um braço, porque a luz dele lhes inventava sombras. Ora, não foi Welles que foi ter com Toland. Foi Toland que veio ter com ele. Sabia que Welles estava, digamos, um bocadinho para o entalado. Sentou-se, manso, ao pé dele e disse-lhe: “Gostava que você me usasse para fazer o seu filme.”
Mas porquê, coisa e tal, perguntou Welles àquele génio da lâmpada que o bom Deus lhe mandava. “Sabe, vi uma peça sua na Broadway e a iluminação tinha soluções geniais. Quem é que faz a luz no teatro?” Welles disse a verdade, que a luz fora dele, como encenador e como mandava a hierarquia da Broadway. “Gostei muito – insistiu Toland – e queria filmar com alguém virgem, que nunca tivesse filmado.”
Deram-se como Deus e os anjos. Por causa da conversa que contei, Welles assumiu que também em Hollywood a palavra final sobre a iluminação era dele. Começaram a filmar Citizen Kane e Welles, doido furioso, chegava ao plateau e ia dando ordens aos técnicos. O que ele não sabia é que Hollywood não era a Broadway e que ali o patrão das luzes era outro.
O teatralíssimo Welles dava ordens e, atrás dele, Toland corrigia tudo, discreto, perante o espanto dos técnicos, a quem ele mandou calar a boca. Até que um dos electricistas, mais sindicalista ou com um ataque de lambe-botismo, meteu um travão ao desmando: “Não sei se sabe, mas a luz é o trabalho do Sr. Toland.” Welles deixou ali mesmo de ser virgem e ficou para morrer. Toland teve uma fúria e talvez tenha até fundido o electricista.
No fim do filme, talvez numa festa em Malibu, Welles quis saber por que é que Toland lhe dera rédea livre. “Orson, só há uma maneira de se aprender alguma coisa: com alguém que não saiba mesmo coisa nenhuma.” Da ignorância de um, da vontade de comer do outro, nasceu um dos filmes mais inovadores da história do cinema.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
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