A ignorância de Welles reinventou o cinema

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Pas­sos Coe­lho quando che­gou ao governo sabia tudo. Orson Wel­les quando che­gou a Hollywood não sabia nada.

Vão dizer-me que não é bem assim, que Wel­les, em 38, já tinha feito Too Much John­son, agora reen­con­trado. Até já li que, logo que seja visto, este Too Much vai rees­cre­ver a his­tó­ria do cinema. Está bem abe­lha! O mar­reta que há em mim põe-se a falar sozi­nho e garante que não, que isso seria a mesma coisa que dizer que o vídeo duma ins­ta­la­ção de Pedro Cabrita Reis, belís­sima que seja, rees­cre­via a his­tó­ria do cinema. Too Much John­son é só um ensaio van­guar­dista nova-iorquino que usou a pelí­cula para apoiar uma peça de teatro.

Bom, vamos a jogo. Temos então Orson Wel­les em Hollywood. Não sabia nada de cinema. Fize­ram mesmo um manual para lhe expli­car o que era um grande plano, um tra­vel­ling, fade in e fade out. Tal e qual como se um edi­tor tivesse dado a Val­ter Hugo Mãe ou a Gon­çalo M. Tava­res um livro com todas as figu­ras de estilo, hipér­bato e pro­so­po­peia, oxi­moro e meto­ní­mia. Com Wel­les nin­guém cho­rou o tempo per­dido: as figu­ras estão lá todas, em Citi­zen Kane, que foi, por se ter espa­lhado em dois antes, o seu pri­meiro e geni­a­lís­simo filme.

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Wel­les, ou melhor, Orson, se me per­mi­tem o tu cá, tu lá, além das teó­ri­cas foi às prá­ti­cas. Falou com toda a gente e Wil­liam Wyler e John Ford foram os rea­li­za­do­res que mais o aju­da­ram. Pôs-se, tam­bém, esqui­zo­fré­nico, a ver e a beber, bobine sim, bobine não, do expres­si­o­nismo ale­mão do Cali­gari e do clas­si­cismo coman­che do Sta­ge­co­ach.

Bem sei que o opo­si­ci­o­nista Seguro tem os olhos em Pas­sos Coe­lho. Mas devia era tê-los na cons­ci­ente e mega­ló­mana igno­rân­cia de Orson Wel­les. O pri­meiro filme, a adap­ta­ção do Heart of Dark­ness de Joseph Con­rad, não saiu do papel. Câmara sub­jec­tiva de começo a fim, uma pre­sença, na nar­ra­tiva, da pelí­cula e meios fíl­mi­cos que daria um “ó filha, chega-te para lá” à des­cons­tru­ção de Der­rida, o filme ou não se fazia ou roça­ria o sublime. Não se fez. Houve depois – ignoremo-la – uma ten­ta­tiva mais modesta e comer­cial, mas a ver­dade é que a 1 de Janeiro de 1940, Orson, meu caro Orson, já devias ter entre­gado um filme e, dois fil­mes para o galheiro, ainda não tinhas fil­mado um plano.

O encon­tro de Wel­les com o direc­tor de foto­gra­fia Gregg Toland, uma espé­cie de Aimar (sau­doso Aimar) de Hollywood, foi a bên­ção que a sublime e ousada igno­rân­cia de Wel­les mere­cia. Encos­tado à segu­rança téc­nica de Toland, o tudo é pos­sí­vel da lou­cura de Wel­les flo­res­ceu. Nas­ceu Citi­zen Kane, filme soberbo onde o todo e as par­tes pare­cem riso­nha­mente novos e únicos. Como se nunca tivesse havido close-ups, pica­dos e con­tra­pi­ca­dos. Como se a ener­gia de Picasso e a ago­nia de Mark Rothko tives­sem inven­tado o cinema. Aben­ço­ada e livre ignorância.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

6 Comentários para “A ignorância de Welles reinventou o cinema”

  1. Olá Caro Manuel S. Fonseca,
    Desta vez percebi tudo e gostei muito do que percebi; se não se entende um texto não se pode gostar, não é verdade.

  2. Caro Manuel, o texto é bom como diz O José Luis que o entendeu, desta vez.
    Eu, ignorante como Welles, fui obrigado a pesquisar muito para, ao final entender a sua benção à ignorância.
    Continuas em oposição ao Passos Coelho? Alguma virtude ele tem? Ou a ignorância nunca poderá ser abençoada!
    Saudações de além mar!

  3. Obrigado, caros José Luis e Miltinho pelos vossos já fiéis comentários.
    Eu não penso, José Luis, que um texto seja (só) para “entender”. Muitos textos são para causar emoção e até perplexidade. Mas é legítimo um leitor querer “entender”. Os meus textos são uma mistura de história do cinema e de experiências pessoais de vida, com a Angola colonial como principal pano de fundo. Pede-se ao leitor alguma adesão e conhecimento dessas duas realidades para que possa “entender”.
    Miltinho, eu não sou oposição a ninguém, sou um observador um bocadinho céptico. Céptico do poder, céptico da oposição. Um preguiçoso, em suma.

  4. Quem seria o Kane de Portugal. Quem representa hoje este papel? Só um céptico observador poderá responder. Algum ignorante abençoado poderá solucionar a crise dos nossos patrícios? Cá a obra de Orson Welles encarnou um Kane, e diversos outros almejam o mesmo poder. A vida imita a arte.
    Deixa a preguiça Manuel.

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