Conta outra, vó – O figo da figueira

Nota: Esta historinha parece pertencer ao folclore nacional. Lembro de tê-la lido diversas vezes, quase sempre em versão semelhante à de minha avó. No livro Histórias de tia Nastácia, de Monteiro Lobato, é a nona história. Nessa versão, são três as filhas que, ao serem desenterradas, voltam à vida, pois eram afilhadas de Nossa Senhora.

Outro dado curioso em Lobato é que o vento, ao bater no capim crescido no local onde as meninas estavam enterradas, faz com que as plantas cantem a mesma canção com que elas tentavam espantar os passarinhos. Isto faz lembrar a lenda grega das orelhas do rei Midas, cujo resumo apresento no final desta história.

 

Era uma vez um viúvo que tinha uma linda filhinha. Viviam no campo e em volta da casa deles cresciam muitas árvores enormes, mangueiras, laranjeiras, jabuticabeiras, abacateiros, mamoeiros e figueiras.

Eles viviam muito bem mas o homem não conseguia cuidar direito da menina porque ele não sabia cozinhar e lavar a roupa e arrumar a casa e tiveram que arranjar uma empregada.

Aí apareceu uma mulher cheia de dengues, que começou a cativar a pequenina. O viúvo gostou dela e acabaram se casando. Ah!, mas o quanto ela era boa, no começo, ela era ruim, depois. Maltratava a menina, ensinava a ela o serviço de casa e exigia obediência.

O pai, que trabalhava fora todo o dia, não percebia nada. E a pobre menina não tinha coragem de contar o que estava acontecendo.

Acabou que ela ficou com todo o serviço da casa. Lavava e passava e varria e cuidava. A madrasta só queria ficar na varanda, de leque na mão e comendo figos, que ela adorava.

Certa vez o pai precisou viajar. Disse que ia demorar muito. A madrasta judiou mais da menina e para lhe dar um trabalho bem difícil, colocou-a vigiando uma enorme figueira, para que os passarinhos não bicassem nenhum figo.

Ela vigiou muito tempo, espantando os bichinhos, mas quantos eram eles? Ela fez um espantalho e não adiantou. Arranjou uma vara comprida e ficava rodeando a figueira mas eles voavam e cantavam e ela ficou cansada e se distraiu e um passarinho mordeu um figo maduro.

A madrasta chegou para ver se ela tinha vigiado direito. Descobrindo o figo bicado, ela ficou furiosa. Mandou cavar um buraco e enterrou a menina viva.

Aí passou muito e muito tempo e o pai acabou voltando da viagem. Perguntou pela filhinha e a mulher disse que ela tinha ficado doente e morrido. O pobre homem ficou desconsolado. Ih!, ele chorou um dia e uma noite e outro dia e outra noite! Deixou de conversar com as pessoas e virou um homem triste.

O tempo foi passando e passando.O viúvo começou a trabalhar como antigamente e aos poucos sua vida foi voltando ao normal.

Sucedeu um dia que o viúvo passeava pelo pomar e encontrou uma planta estranha. Uma pequena árvore, com galhos finos que caíam como se fossem cabelos. Achou estranho tudo aquilo e chamou seu jardineiro. Mandou que cortasse a planta e a queimasse.

No dia seguinte, bem de madrugada, ainda escuro, o jardineiro pegou o machado para fazer como tinha sido ordenado. Quando levantou o machado, ouviu um gemido e parou com o machado no ar. Ouviu uma voz linda cantando:

Jardineiro de meu pai

Não me corte meus cabelos

A madrasta me enterrou

Pelo figo da figueira

Pelo figo da figueira.

O pobre coitado levou um susto tamanho que deixou cair o machado e saiu correndo. Quando já era dia, com o sol claro e quente, ele voltou ao local, pegou o machado e se foi. O viúvo perguntou à noite pela planta e o jardineiro falou que não tinha tido tempo, ficava pro dia seguinte.

No dia seguinte, o jardineiro não foi tão cedo mas ainda era de madrugada. Aconteceu igualzinho. Quando levantou o machado, ouviu um gemido. Parou com o machado no ar e ficou escutando:

Jardineiro de meu pai

Não me corte meus cabelos

A madrasta me enterrou

Pelo figo da figueira

Pelo figo da figueira.

O jardineiro procurou de onde tinha vindo a voz. Não encontrou ninguém por perto. Pra se certificar, levantou novamente o machado e ficou ouvindo:

Jardineiro de meu pai

Não me corte meus cabelos

A madrasta me enterrou

Pelo figo da figueira

Pelo figo da figueira.

O jardineiro descobriu que era a planta que estava cantando. Com os olhos cheios de lágrimas ele foi chamar o viúvo. Disse que tinha descoberto um segredo terrível.

O pobre homem não entendia nada. Seguiu o jardineiro em silêncio e o jardineiro fez sinal pra ele parar. O viúvo se escondeu atrás duma moita e ficou olhando. O jardineiro chegou junto à planta e levantou o machado. Ouviu-se o gemido e:

Jardineiro de meu pai

Não me corte meus cabelos

A madrasta me enterrou

Pelo figo da figueira

Pelo figo da figueira.

Ouvindo a voz de sua filhinha, o pobre pai começou a chorar e foi correndo até a planta. Chegando ali foi que ele entendeu que ela estava morta e seus cabelos eram as folhas da planta.

Desesperado mandou que tirassem a planta com a raiz e tudo e a plantassem num grande vaso. Ao desenterrarem a planta, o velho pai descobriu o corpinho de sua filhinha, intacto, apenas muito branco. Mandou que a lavassem, mandou que a vestissem e preparou um enterro em terra santa, com flores e dobres de sinos.

E a madrasta, vendo que tinha sido descoberta, caiu pra trás, fulminada.

Do livro Conta Outra, Vó, por Jorge Teles. 

3 Comentários para “Conta outra, vó – O figo da figueira”

  1. Livro antigo que continha essa história e tantas outras , gostaria tanto de saber o nome do livro ,acho que ele é do ano de 1949!

  2. Que surpresa agradável e emocionante d encontrar com esse conto.
    Estou pass do por um desafio muro difícil que é a saúde de minha mãe é essa música não sai da minha cabeça.
    Minha mãe contava essa história e muitas outras para mim e para as minha amigas… adorávamos ouvir riais histórias.
    Nós nos tornamos adultas, e minha mãe ficou doente e pedimos para que contasse novamente…
    É como se voltasse ao passado, onde éramos crianças, inocentes… uma verdadeira nostalgia.
    Minha mãe se encontra enferma, esta muito doente. Porém, esse conto, mas principalmente essa música, faz com que eu lembre da minha mãe forte e saudável…
    Pensamos que nossas mães são indestrutíveis…
    Li esse conto com lágrimas…Lembranças que jamais se apagam

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