Amor e horror na Berlim da Guerra Fria

Em O Inocente ou O Relacionamento Especial, Ian McEwan conta uma história de amor e horror passada no auge e no coração da Guerra Fria. A época é 1955 e 1956, o cenário é Berlim, a cidade dividida então em quatro setores, cada um controlado por uma das maiores potências que haviam derrotado o nazismo uma década antes, em 1945 – Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, do lado ocidental, e União Soviética, do lado oriental.

Uma bela história de amor – que inclui uma horripilante história de horror, tendo como pano de fundo um momento importante da Grande História.

Não seria possível haver uma história passada na Berlim de meados dos anos 50 em que não houvesse espionagem, espiões, e ela e eles estão presentes no romance, e sua presença é importante, é imprescindível no desenrolar da trama. Por mais importante que sejam, no entanto, a espionagem e os espiões estão num plano secundário. Até porque o protagonista da história, Leonard Marnham, não tem muitas informações sobre o que os espiões estão fazendo; ele é apenas um peão no grande jogo, uma peça menor no tabuleiro.

zzzzinocenteMcEwan partiu de um fato real para criar sua ficção. Como ele mesmo diz na “Nota do autor” com que encerra o livro, “O Túnel de Berlim, também conhecido como Operação Gold, foi um empreendimento conjunto da CIA e do M16 que funcionou por pouco menos de um ano, até abril de 1956”.

A operação era a seguinte: coordenados por agentes dos dois serviços de inteligência, a americana CIA e a britânica M16, homens do exército americano e técnicos em comunicações ingleses cavaram um túnel a partir do setor ocidental de Berlim até chegar ao setor soviético, e instalaram aparelhos de escuta telefônica para captar as informações transmitidas a partir do Alto Comando Soviético

Esses são os fatos reais. Nessa operação de espionagem que de fato ocorreu, a imaginação de McEwan incrustrou a história de Leonard, um rapaz londrino de apenas 25 anos, funcionário baixo clero do British Post Office, o órgão que, como explica uma nota do tradutor do livro editado pela Companhia das Letras, até os anos 80 era responsável pelos serviços postais e pela totalidade do sistema de telecomunicações do Reino Unido. Uma gigantesca estatal que, se fosse no Brasil, englobaria os Correios e a antiga Telebrás pré-privatização da telefonia.

Leonard era um técnico em telefonia. Não entendia de nada além disso: telefonia, gravadores, fios, válvulas. Ainda morava com os pais em Londres, e era tão inocente que jamais havia tido uma experiência sexual.

Em sua estadia de pouco mais de um ano em Berlim, terá ampla experiência com sexo, aprenderá um pouco sobre espionagem – e viverá uma das situações mais horrendas, mais traumáticas, mais aterrorizantes que um ser humano pode enfrentar.

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Ian McEwan é de 1948 – exatamente da minha geração. Não era absolutamente raro que homens da nossa geração chegassem ao fim da adolescência, ao início da vida adulta, sem ter tido sua primeira experiência sexual. No seu romance de 2007, Na Praia (no original, On Chesil Beach), McEwan descreve a primeira noite de um jovem casal de ingleses de sua (e minha) geração, ele e ela virgens. Na Praia é um livro de uma tristeza forte, densa, pegajosa, profunda.

O Inocente, escrito 18 anos antes, em 1989, também é assim, dessa tristeza forte, densa, pegajosa, profunda. Só que, a essa tristeza toda, acrescenta-se o elemento do horror puro e simples.

Os dois primeiros romances de McEwan, O Jardim de Cimento, de 1978 (lançado no Brasil em 2009) e The Comfort of Strangers, de 1981 (que eu saiba, ainda não lançado aqui), fizeram com que a crítica usasse o adjetivo “gótico”, e deram ao autor o apelido de Ian Macabre.

O macabro está bem presente em O Inocente. Mas não voltou a aparecer em suas obras posteriores, Amor para Sempre/Enduring Love (1997), Amsterdam (1998), Reparação/Atonement (2001), Sábado/Saturday (2005), o já citado Na Praia, Solar (2010) e Serena/Sweet Touch (2012).

Em todos esses romances escritos depois de O Inocente, há tristeza profunda, arrependimento por erros cometidos, desencontros, decepções, frustrações. Há agudas, acuradas, lancinantes observações sobre como o comportamento humano pode provocar inquietação, dor, angústia.

Em vários deles há violência, espanto – mas não propriamente o macabro, o horror, o terror, como há em parte da narrativa de O Inocente.

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Muito diferentemente do que acontece em A Praia, em que os pobres jovens noivos fazem sua iniciação sexual sem qualquer tipo de experiência prévia, em O Inocente o inocente protagonista aprende com quem já sabe. O acaso faz com que Leonard, ainda um garotão inexperiente em praticamente tudo na vida, conheça Maria, cinco anos mais velha do que ele e bastante vivida.

Maria – é assim que McEwan a apresenta – “trabalhava como datilógrafa e tradutora em uma pequena oficina mecânica do Exército britânico em Spandau. Tinha um ex-marido chamado Otto, que aparecia de forma imprevisível duas ou três vezes ao ano para arrancar dinheiro dela e, de quando em quando, dar-lhe uma pancada na cabeça. (…) Aprendera inglês com a avó, que antes e depois da Primeira Guerra havia sido instrutora de alemão numa escola para meninos ingleses na Suíça. (…) Atualmente os pais moravam em Pankow, no setor russo.”

Sofrida como qualquer pessoa que vivera num país em guerra, agora ocupado por quatro potências estrangeiras, mais sofrida ainda porque fizera a besteira de se casar com um homem que se revelou um bêbado brutal, Maria tinha medo de homens fortes. A inocência, a inexperiência do garotão inglês a conquistam.

Para Leonard, aprender o sexo com uma mulher experiente, doce e belíssima foi o paraíso.

É algo perto do paraíso ler a forma com que Ian McEwan descreve o aprendizado de Leonard com Maria.

“Maria ensinou Leonard a ser um amante incansável e atencioso, orientou-o a esperar que ela tivesse todos os seus orgasmos antes de ele ter o dele. Leonard não viu nada de mais nisso, pareceu-lhe uma atitude de puro cavalheirismo, tanto quanto o homem dar passagem à mulher ao entrar por uma porta. (…) Verificou que o desejo dela não obedecia a regras estabelecidas. Às vezes um simples olhar bastava para incendiá-la. Em outras ocasiões, embora se aplicasse pacientemente, como um menino entretido em montar seu aeromodelo, ela o interrompia sem mais para sugerir um sanduíche de queijo e uma nova rodada de chá. Reparou que Maria apreciava que ele murmurasse palavras carinhosas em seu ouvido, mas não além de certo ponto, não depois que os olhos dela tivessem dado início às circunvoluções internas. A essa altura, não queria ser distraída.”

É também impossível, ao ler a história de Leonard e Maria, não lembrar de O Leitor, outro livro (e filme) que fala de uma mulher mais velha que inicia sexualmente um garoto na Alemanha pós-nazismo. Claro, O Leitor, o livro do alemão Bernhard Schlink, é de 2005, e o filme, dirigido pelo inglês Stephen Daldry, é de 2008, bem posterior, portanto, ao livro em que a experiente alemã Maria ensina as coisas da vida ao inocente inglês Leonard, mas acho que essa é uma interessante coincidência.

Tanto a alemã Maria de O Inocente quanto a alemã Hanna de O Leitor foram interpretadas, nas versões cinematográficas dos livros, por atrizes não alemãs. Hanna apareceu na tela na pele da inglesa Kate Winslet, essa atriz soberba, das mais competentes que já passaram pelas telas neste cento e dez anos de cinema. Maria vem na pele de Isabella Rossellini, a filha do incensado realizador italiano Roberto e da sueca Ingrid Bergman, provavelmente o rosto mais belo que Deus, ou os deuses, ou, para quem não crê, a genética já botou na casca do planeta. E, meu Deus do céu e também da terra, como Isabella está parecida com a mãe, no filme que John Schlesinger dirigiu em 1993, poucos anos após o lançamento do livro.

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O próprio Ian McEwan escreveu o roteiro do filme baseado em seu quarto romance.

zzzzinocente5Vi O Inocente, o filme, em 2003, na TV a cabo, conforme mostram minhas anotações. Embora fosse um sujeito que, como Ian McEwan, já tivesse passado do meio século de idade, ainda não conhecia o autor. Só leria pela primeira vez um livro dele – o Na Praia – na passagem de 2007 para 2008. Nos anos seguintes, devoraria, com a adoração de um muçulmano abnegado em viagem a Meca, Reparação, Amor para Sempre, Sábado, Solar, Amsterdam e Serena, acho que nessa ordem.

Não percebi, ao ver o filme, a grandeza da história. Na época, anotei apenas:

Isabella Rossellini no auge da beleza, tão esplendorosa quanto a mãe. A trama é um tanto ou quanto enrolada, e a forma como o jovem casal (…) (spoiler! censurado!) é de uma violência de arrepiar, mesmo depois de décadas de todo tipo de violência explícita no cinema. No final há um tributo a Casablanca (…).

Quando resolvi criar o site 50 Anos de Filmes, peguei essa anotação mínima e acrescentei informações, para que pudesse ter um post do filme:

Aqui preciso lembrar, de novo, mais uma vez, que estamos sempre vivendo e aprendendo, wimwenders e aprendenders. Só agora, em 2008, revendo a anotação original que fiz logo depois de ver o filme em 2003, é que vejo que o roteiro é de Ian McEwan, baseado em uma obra dele mesmo. (…)Ele realmente é um dos escritores mais extraordinários dos últimos tempos. Dá vontade de ir atrás do livro que originou este filme.

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“Dá vontade de ir atrás do livro que originou o filme”, escrevi eu, em 1998, ao botar no ar o post sobre O Inocente, o filme. Pois bem: dei de cara com O Inocente, o livro, agora há pouco, em março de 2014. Pelo que a edição da Companhia das Letras informa, o livro havia sido lançado no Brasil em 1992 pela Rocco. A Companhia das Letras passou depois a ter os direitos no Brasil sobre as obras de McEwan, e em 2003 lançou o livro, com tradução de Alexandre Hubner. Em 2009 houve uma reimpressão – que só vim a ver em 2014.

Essas datas citadas no parágrafo acima não importam muito. Na verdade, o que importa mesmo são as datas a seguir:

* A já citada “Nota do Autor”, que encerra o livro, com a explicação sobre o que há de verdade, de fatos reais, sobre O Túnel de Berlim, mais os agradecimentos a quem o ajudou a dar a versão final do texto, é datada de setembro de 1989.

* O Muro de Berlim, que foi construído a partir de agosto de 1961, começou a ser derrubado em 9 de novembro de 1989. Apenas dois meses depois de Ian McEwan concluir e datar o pós-fácio do livro!

* O livro, que tem o registro de copyright de “1989, 1990”, encerra-se com a seguinte frase: “… iriam um dia até a Potsdamer Platz e subiriam na plataforma de madeira para dar uma boa olhada no Muro, juntos, antes que o pusessem abaixo de uma vez por todas”.

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Teria McEwan, em um livro terminado e mandado para a impressão em setembro de 1989, antecipado a queda do Muro que só viria a ocorrer a partir de novembro daquele ano?

Ou teria ele reescrito, em 1990, data que consta como sendo do copyright, o final de sua narrativa?

Tentei, numa pesquisa (confesso que rápida, e provavelmente muito falha), encontrar alguma resposta a essas dúvidas. Não consegui.

É bem possível que não, que ele não tenha reescrito o último capítulo, ao qual deu o título de “Pós-escrito”, e cuja ação se passa em junho de 1987. Porque, afinal, em setembro de 1989, quando ele escreveu a “Nota do Autor”, já eram claros os sinais de que o Muro estava mesmo para ruir. Ali, no “Pós-escrito”, o funcionário de um hotel de Berlim Ocidental diz:

         “Agora há pouco os estudantes organizaram um protesto em Berlim Oriental. O senhor faz idéia do que estavam gritando? O nome do líder soviético. E a polícia partiu para cima deles e os perseguiu com canhões de água. (…) Quem diria que um dia os estudantes de Berlim Oriental seriam reprimidos por gritar o nome do secretário-geral da União Soviética? É surreal!”

O secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética era então Mikhail Gorbachev, o líder que promoveu as reformas, a glasnost e a perestroika, que iriam em última análise fazer ruir a própria URSS – e com isso derrubar, como num dominó, num castelo de cartas, os regimes comunistas de todos os países satélites da URSS na Europa Central e do Leste, inclusive, é claro, o da RDA, a República Democrática Alemã.

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zzzzinocente6É um tanto estranho ler o livro depois de ter visto o filme, e portanto saber da trama. Quando vi o livro, na loja da Companhia das Letras no Conjunto Nacional, não pensei sobre isso: só pensei em que era um livro de McEwan que eu ainda não tinha lido, e que maravilha existir um livro de McEwan que a gente ainda não leu.

Comecei a ler O Inocente me lembrando de que tinha visto o filme – e me lembrando de que havia o horror. Não me lembrava bem de tudo o que acontecia, mas me lembrava muito bem do horror – que, no livro da edição brasileira, acontece a partir da página 213, no capítulo 17.

Há em geral esta noção de que os livros são sempre melhores que os filmes baseados neles. Muita gente acredita nesta noção como se fosse um dogma.

Não concordo com isso. Não acho que essa seja uma regra geral, absoluta – embora muitas vezes de fato os filmes fiquem aquém dos livros em que se baseiam.

Adoro filmes tanto adoro livros. E sei perfeitamente que são duas linguagens extremamente diferentes. Nos dois tipos de linguagem, tão absolutamente diferentes, dá no mesmo: a rigor, a rigor, o que importa é que haja uma bela história bem contada.

Ian McEwan tem um estilo grandioso, soberbo.

Em 1989-1990, quando lançou O Inocente, ainda era jovem, ali na faixa dos 40 anos. Refinaria ainda mais seu estilo narrativo nos anos seguintes.

McEwan consegue mexer com o tempo e com as formas diferentes com que a mesma realidade é enxergada e compreendida pelas pessoas como nenhum outro autor que já li.

Um simples gesto, uma pequena troca de palavras, no texto de McEwan, pode se estender por diversos parágrafos, diversas páginas. E  multifacetadamente: aquele simples gesto, aquela pequena troca de palavras, é mostrada no texto dele do jeito que presenciaram aquilo o personagem A, o personagem B, o personagem C.

Um único pequeno fato nos é apresentado através da visão do personagem A, do personagem B, do personagem C.

De todos os vários livros dele que já li, o mais perfeito me parece ser Reparação, de 2001. Mas em vários de seus romances ele trabalha com essa coisa de escandir, de alongar cada momento importante da narrativa, ao mesmo tempo em que apresenta o viés de cada personagem, consecutivamente.

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Assim, por exemplo, quando, no meio da narrativa, lá pelo capítulo 16, ele narra a festinha de noivado de Leonard e Maria, McEwan nos mostra o que vai pela cabeça de cada um deles. E ele estica a corda a não mais poder – ele dá para o leitor os indícios de que virá aí uma tragédia, mas estica a corda, estica, estica.

Quando a corda afinal é rompida, meu Deus do céu e também da terra, quanto horror assoma.

Confesso, sem ficar envergonhado, que tive que pular alguns parágrafos da descrição nua, crua, violenta, virulenta, agressivamente explícita do auge do horror – assim como Mary, e eu também, prefiro olhar para o lado quando, num filme, um personagem, por exemplo, injeta uma seringa na veia.

Os capítulos que se seguem ao ápice do horror são extraordinariamente bem escritos – mas são duros de serem lidos. Como sabe com maestria fazer, McEwan mistura os tempos: vai mostrando as ações posteriores e ao mesmo tempo detalhando minuciosamente o que havia acontecido no momento fatal.

Não é possível que o leitor não simpatize com o pobre Leonard, e portanto não se compadeça dele, não sofra junto com ele.

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Faz muito tempo que vi o filme, e é claro que não me lembro de muita coisa dele. Não está na minha locadora, e não tenho costume de baixar filmes pela internet; será muito difícil, assim, que consiga revê-lo. Mas, pelo que anotei na época (“No final há um tributo a Casablanca”), o filme não traz o que McEwan descreve nas cerca de 20 páginas do “Pós-escrito”, quando a ação dá um grande salto no tempo, pula de 1956 para 1987.

É de uma tristeza imensa esse “Pós-escrito”. Uma tristeza funda, amarga, que nem um leve toque de esperança lançado bem ao final diminui.

A vida, nos livros de Ian McEwan, é feita de poucos momentos de intensa alegria – e anos a fio de tristeza sem fim.

29 de abril e 2 de maio de 2014

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