Deus é um despesista. Fez o mundo em sete dias. Devia era aprender com Edgar G. Ulmer, que fazia filmes em seis dias. O problema de Deus é não ser um cineasta alemão. Tivesse Ele sido assistente de Murnau e de Lang, haveria mulheres na Lua e nas florestas do mundo outros tabus cantariam.
A América, que pode não ser Deus, mas não é parva, chamou Murnau e levou Ulmer no pacote. Deixaram-no realizar westerns mudos e curtos, ao lado de William Wyler. Os cenários eram duas ruas. Wyler na rua de cima, Ulmer na rua de baixo. Quando um usava os cavalos o outro fazia grandes-planos dos actores. Calendário apertado: 2ª e 3ª escrevia-se o guião; 4ª e 5ª filmava-se; montava-se à 6ª. Ao sábado, ala para Tijuana jogar cartas, talvez dados, talvez beber, e algum outro talvez em que se tropeçasse. Andou nisto e um dia, série B, em 1945, filmou uma obra-prima, Detour, o mais cruel e intenso filme negro que a série B americana fez nas noites da sua vida.
Detour é o filme de um homem em bancarrota emocional e criativa, um pianista de cabarets rascas, que já só aspira chegar a Carnegie Hall como porteiro – somos nós, podia ser Portugal. À boleia pela América, este homem, de tão falhado, acumula até as culpas de um assassínio que não cometeu, ou talvez não tenha cometido. Uma mulher chantageia-o, enfiando-lhe as garras nessa culpa diletante e obscura. As mortes são como as cerejas e as mãos do nosso pianista, involuntárias, matam ou voltam a matar. É sabido que uma mulher, mesmo fatal, se estrangulada já não chantageia ninguém.
Tom Neal, o actor que deu estilo e alma a este pianista, ficou com o filme colado ao corpo. Por uma mulher, esmurrou outro actor, Franchot Tone, e foi corrido de Hollywood como um cão. Dedicou-se à jardinagem e casou com uma linda e boa moça de 25 anos. Correu bem, primeiro. Foi um Detour depois. Uns ciúmes infernais e baixo-esventrados levaram Tom Neal – na mesma lógica, involuntária, mas fatídica, de Detour – a disparar uma .45 atrás da orelha direita da mulher desamada. Confessou o crime e jura que, depois do tiro, disse à morta: “Não há vida, verdade, inteligência ou substância na mente, tudo é infinito e Deus está em tudo. O espírito é a verdade imortal, a matéria é um erro mortal.” Tenho a certeza de que o perverso Ulmer estava a dirigi-lo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Detour no Brasil é A Curva do Destino.