O que se via era um povo em festa, mas talvez fossem só duas ditaduras a beijar-se.
Os meus olhos tinham treze anos. Pouco mais ou menos o que tinham os olhos de Jim, o miúdo inglês que Christian Bale é em Empire of the Sun. Majestoso, a pisar o vasto oceano, esquivando-se à ponta de uma ilha que era toda ponta, o cruzador Barroso entrou na baía, direito ao cais mais nobre do porto de Luanda.
Para nós, meninos, era Iemanjá que vinha do Brasil e surfava as águas. Ou talvez não fosse uma deusa, que uma deusa não tem tantos canhões assim. Três torres de popa, duas de proa, com quinze canhões de seis polegadas, mais os trinta e seis que cintilavam em cada bordo do navio. Cinquenta oficiais e mil praças: a guerra, como Cristo, caminhava sobre as águas.
Nunca tínhamos visto, a não ser em sonhos, um cruzador. Quase treze mil toneladas, uma luva entre as ondas, o cruzador aproximou-se da gare apinhada e entusiástica. Se eu não fosse um garoto tímido, poderia ter gritado como o Jim de Spielberg: “Cruzador Barroso, Cadillac dos oceanos.”
Se cheguei a querer gritar, a voz parou encostadinha à glote. Já se via o convés. Oficiais, sargentos e cabos, centenas de marinheiros dispunham-se numa formatura de Esther Williams, uma geometria tingida a fardas brancas. Eram nossas as bocas abertas de espanto. Aquilo era um navio de guerra. Lindo. Limpo.
Ia dizer que era mortal, mas não. Era uma gigantesca sereia, uma caixa de música de 185 metros de comprimento. No convés, à frente da formatura maruja, outra formatura de clarinetes, tuba, trompetes, saxofones e tambores. Um cruzador acostava ao cais e chegava-nos do mar a canção que havia meses a cidade ouvia na rádio. “A Banda”, de Chico Buarque. Do convés, uma banda militar tocava coisas de amor e, no cais, a meninada toda se assanhou: sem um tiro, o cruzador Barroso tinha conquistado Luanda.
Ainda nem sabíamos que Tom Cruise tinha nascido e aquilo já era o nosso Top Gun, o momento mais pop, tão à toa, da nossa vida colonial. Só que, em vez de “Take My Breath Away”, no convés do barco os marinheiros tocavam “A Banda”.
Com uma ironia que sei lá eu bem se lhe fará azia ou não, Chico Buarque punha o Brasil dos generais ao colo de uma Luanda colonial. E foi a festa, pá. Almoços e jantares, barris de cerveja. Imagino que, antecipando esse outro filme pop que foi An Officer and a Gentleman, tenha até havido um Richard Gere a arrebatar uma mulatíssima Debra Winger ao escaldante Bairro Operário. Se casaram, foram felizes para sempre.
O que Chico uniu, Buarque separou. Com outra canção, um fado tropical, acabou com as avencas na catinga e o alecrim no canavial. Agora já só há tanto mar e, escondido em mim, um miúdo de 13 anos com saudades da linda mulata com rendas do Alentejo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
O cruzador nasceu norte americano em 1933, seu nome era “USS Philadelphia” e participou da segunda guerra, vendidoa marinha brasileira em 1951 e desativado em 1973.
Deve ter encantado Manuel por volta de 1966.
Naquela época Chico encantava os miliatres cm suas composições líricas e romanticas.
A mulata de Chico nada lembrava a falsa mulata de Manuel.
Com o fim do cruzador, Chico se dedicou a outra cruzada.
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Miltinho é isso mesmo. Tem razão em tudo, mas não sei se foi 67. Escrevi de memória…