Richard Dreyfuss foi um dos rapazes do meu bairro. O pornógrafo de Inserts, o jovial Dreyfuss de Jaws, o obcecado Dreyfuss de Close Encounters foram meus vizinhos. Mais do que esses, saído da minha rua colonial de Luanda, seria ou foi o Dreyfuss de American Graffitti.
Movida a metafísica e chocolate, a Rua Fernando Pessoa cruzava o bairro, desaguando na ampla Avenida do Brasil, frente ao prédio que, mal imaginávamos, viria a ser o sombrio forte apache da FNLA que os alegres índios do MPLA, um dia – vi eu e Dreyfuss – esturricariam a morteiros e bazucadas.
O bairro começava no largo onde o quarteto dos Cunhas ensaiava à tarde o que à noite tocaria na doçura de um cabaret e acabava na barbearia da minha rua, onde, a jovens mais promissores, elite que orgulhoso integrei, mestre Mário dava acesso a luxuriosas revistas escandinavas e ao “Avante” em papel bíblia. O Dreyfuss de American Graffiti sentou-se, juro, à bateria dos Cunhas e folheou, concupiscente, as pedagógicas revistas.
Os mais velhos, na esplanada da Churrasqueira, ruminavam estratégia sobre tabuleiros de damas e gamão, regando a cucas os planos de caça, um veado, uma pacaça, já no fim-de-semana. Via-se que eram portugueses: planeavam uma pacaça, voltavam com uma jibóia.
O bando juvenil conspirava atentados indecentes à decente comunidade adulta. Com tijolos, suspendíamos a dois centímetros do chão as rodas do motor para desespero do dono do automóvel na manhã seguinte ou enchíamos os tampões com pedrinhas roladas, garantida música infernal quando o carro arrancava. Foi preciso ver o American Graffiti, de George Lucas, para sentirmos que nos tinha sido feita justiça poética.
Dreyfuss, na mais ociosa das noites, senta-se no capot do carro de um gang. Quando dá conta tem os donos, três “Pharaos”, à sua volta. O carro, saiba-se, é a intocável pirâmide de qualquer “Pharao”. Para se limpar do atentado à honra do bólide, Dreyfuss tem de passar prova iniciática. Dão-lhe um cabo de aço e mandam-no prendê-lo a uma coluna de cimento e ao eixo traseiro do carro da polícia ali estacionado.
Dreyfuss pensa que não é do tipo competitivo. Mas o desafio desperta nele um adormecido guerrilheiro paleolítico. Converte-se num animal: corre, camufla-se, rasteja e engata o cabo. Os “Pharaos” recebem-no em triunfo. Arrancam, pneus aos guinchos, desafiando a polícia que dispara atrás deles. As leis da física fazem o resto: o cabo estica e o eixo traseiro do carro da polícia solta-se com estrondo e um glorioso uau da plateia.
Nesse ápice de triunfo uma centelha incendeia o cérebro de Dreyfuss. Ao contrário do que pensava, precisa de deixar para trás os amigos que tanto ama para descobrir outros amigos, outro horizonte. Há despedidas que se fazem por amor. A nós próprios.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Valeu Manoel, linda história, belo tezto, bom ator o Greyfuss e genial a sua direção.
Obrigado, amigo.