O pior dia nos 47 anos de trabalho de Maria de Lourdes a surpreendeu na quinta-feira passada. O que pior que a morte do patrão que tanto venerava, o doutor Ruy, enterrado “ontem”, poderia ainda lhe acontecer?
Foi quando ela abriu uma porta: “Vi a cadeira dele vazia… desabei!”
Dia seguinte, sexta-feira, seu aniversário de 68 anos, Maria de Lourdes já tinha entrado e saído da sala do dr. Ruy inúmeras vezes. Não que houvesse superado o dolorido vazio, mas porque, como explicou, resignada, “a correria atropela os sentimentos”.
O dr. Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de S.Paulo, era cercado por alguns funcionários fiéis que o admiravam e o tratavam com carinho. Estavam lá no velório e no enterro, tristes, anônimos, esquecidos na lista de presenças publicada no Estadão, embora reconhecidos pela família Mesquita como leais amigos, gente da casa. Um deles, o Barbosinha, esteve no hospital Sírio Libanês para visitar o chefe um dia antes de sua morte. Ficaram lembrando de outros tempos, quando falavam de futebol, no final das tardes em que se encontravam.
O trabalho de José Barbosa, o Barbosinha, consistia em levar documentos do Estadão e do (então vivo) Jornal da Tarde aos órgãos públicos. Sua vida, desde sempre, orbitou em torno do dr. Ruy e de seu irmão, dr. Júlio, morto há 17 anos, pois que nascido na fazenda da família em Louveira, administrada por seu pai. Perto, a 72 quilômetros de São Paulo, hoje ela reúne a nova geração dos Mesquita em finais de semana ou em festas.
Fazia mais de 20 anos que os contínuos Ademir Bento e Edson Vicente atendiam às campainhas dos irmãos Ruy e Júlio. Quando soavam sinalizavam, em geral, que as notas da página 3 do dia seguinte estavam lidas e prontas para publicação, desde que executadas as observações e correções pedidas à mão, letras difíceis de entender, à margem das laudas, ao tempo em que eram datilografadas, ou impressas especialmente do computador.
Acabou a campainha. Na ala da diretoria, no sexto andar do prédio do Estadão, agora reina o silêncio. O vaivém de Ademir e Edson será com certeza substituído pelo sistema de editoração já usado faz tempo nas redações, ou por e-mails. O outro trabalho de abastecer o dr. Ruy com resumos impressos das notícias vespertinas, ou convocar alguém da redação para reunião, agora está enterrado por invisíveis mensageiros eletrônicos ou endereços na internet.
Maria de Lourdes lembra a resistência do dr. Ruy em aceitar a cadeira de rodas sem a qual não poderia mais se mover. Foram Ademir e Edson que a tornaram mais fácil de ser suportada – e, por fim, adotada. Os dois o esperavam toda manhã no estacionamento do jornal, no bairro do Limão. Com carinho o tiravam do carro e o levavam até sua sala. À tarde, eram chamados para o traslado da volta. Uma vez, foram mobilizados para um extra, quando da morte de Olavo Setúbal.
Levaram-no ao cemitério, que ele fazia questão de despedir-se do amigo. Na casa da família na rua Angatuba, no Pacaembu, quem cuidava da operação com a cadeira de rodas, internamente, era Cássio, o faz-tudo.
O último dia de trabalho do dr. Ruy no jornal foi em 23 de abril. Agora definitivamente sem ele, a sua “turma” de íntimos anônimos passou a andar em “campo minado”. É a previsão de Maria de Lourdes, ela própria se retirando:
– Tinha combinado que quando ele nos deixasse, eu não ficaria. O campo está minado…
– Mas que minas são essas? E quem as plantou?
– Acompanhei o dr. Ruy no seu calvário por 17 anos, a contar da morte do irmão, o dr. Júlio. Antes servia aos dois, e passei a atendê-lo unicamente. Posso dizer: ele teve desencantos horríveis. Partia de sua sala cansadíssimo, desanimado, invariavelmente.
Embora sem o dizer, a fiel secretária se refere, provavelmente, à desunião familiar que faz o Estadão, agora sem o dr. Ruy, não ter mais um Mesquita no comando editorial. Mas não só, ela acrescenta: “O clima ficou péssimo”. Para os que fundaram o Jornal da Tarde, em 1966, o contraste não poderia ser maior. Acostumaram-se a ter o patrão por avalista ao alugar apartamentos, a assistir futebol ou momentos históricos ao vivo, pela tevê, com ele presente, torcendo, opinando e discutindo. E nos tempos de repressão pós Ato Institucional Número 5, um defensor de quem do jornal caísse preso, às vezes mesmo de alguém que não conhecesse. Não mais. À sua revelia, ondas de demissões se sucederam até há bem pouco tempo. Seu “vespertino” que fez época na imprensa brasileira, morto. Muitos repórteres e redatores hoje no jornal corroboram a visão de Maria de Lourdes. E também o baixo clero, os anônimos do Grupo Estado.
– Que Deus ilumine esse pessoal todo. Eu agora vou descansar – repetia Maria de Lourdes na sexta-feira, seu aniversário, como se quisesse ainda se convencer. Foi para casa depois de uma maratona de telefonemas para marcar a missa de sétimo dia do dr. Ruy. Hoje, às 11h, na igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Jardim Paulistano.
(*) Este texto foi originalmente publicado na edição de 27 de maio do Diário do Comércio, que Moisés Rabinovici dirige, com brilho, há alguns anos.
Não vou tentar fazer introdução de Moisés Rabinovici aqui. Seria mais ou menos como se um iniciante dos juvenis do Corinthians tentasse mostrar quem é Sócrates.