Por Moustaki vesti pela primeira vez na vida um smoking, eu, que tenho ódio de terno, e me enfiei num avião para uma viagem a Paris, eu, que detesto viajar.
Na frase acima, tentei imitar Moustaki.
Em “Le Métèque”, sua canção fundamental, seu “Blowin’ in the Wind”, ele diz:
Com minha cara de estrangeiro,
De judeu errante, de pastor grego
E meus cabelos aos quatro ventos
Com meus olhos desbotados
Que me dão um ar de sonhador,
Eu, que já não sonho mais,
Com minhas mãos de vagabundo,
De músico e de vadio
Que já pilharam tantos jardins,
Com minha boca que bebeu muito,
Que beijou e mordeu
Sem jamais ter saciado sua fome
Eu, que já não sonho mais, diz ele. Eu, que tenho ódio de terno e odeio viajar.
***
Conto as duas historinhas.
Não me lembro do ano exato da primeira. Foi seguramente perto de 1980 – talvez 1978, talvez 1981. Naquele ano, o convidado para a grande festa da entrega dos Prêmios Air France, no Teatro Municipal de São Paulo, era Moustaki. Já tinha tido Yves Montand num outro ano, creio que Mireille Mathieu em outro.
Aqui é preciso lembrar o que era o Prêmio Air France.
O mundo era outro, naquele início dos anos 80 ou talvez final dos 70, e a Air France, achando que era um bom marketing, gastava uma boa grana com esse prêmio, dado aos melhores do teatro e do cinema. Anualmente havia uma festa solene de entrega dos prêmios, sempre no Municipal do Rio e no Municipal de São Paulo. Não havia ingressos à venda; eram todos convidados da Air France – gente que de alguma forma era importante para a empresa, políticos, empresários, jornalistas.
Os organizadores queriam que fossem festas elegantes, de gala, à la cerimônia do Oscar, e então exigia-se traje de gala. No caso dos homens, o ridículo smoking.
Conseguir um convite não foi tão difícil. Regina, então editora na Abril, conseguiu um para mim.
Duro foi me meter dentro de um smoking, alugado numa daquelas lojas dos Jardins.
Mas como era para ver um show de Moustaki, pela primeira e talvez única vez na vida, fui.
A cerimônia era tediosa e longa, como são todas as cerimônias de entrega de prêmio.
Não foi bom o show que veio depois. Não foi nada bom.
Aquelas pessoas não conheciam Georges Moustaki, não tinham a menor idéia de quem era ele. E tinham ido lá para badalar, serem vistas pelos outros, verem celebridades recebendo prêmio.
Com cinco minutos de espetáculo dezenas de pessoas começaram a deixar o teatro.
Um artista não se entusiasma com uma platéia assim.
Havia menos de dez por cento do público quando Moustaki, seguramente decepcionado, terminou o show.
***
Corta, avançamos para 2000 e tanto.
Mary tem asinhas nos pés – como, aliás, a mãe dela, Dona Lúcia. Adora uma viagem. Tretou e relou ela viaja.
Eu tenho aquelas bolas de ferro de prisioneiro de história em quadrinhos nos pés. Viajar me cansa, assusta. Fico tenso, nervoso. Quando finalmente consigo viajar, claro que gosto – mas que é difícil, é.
Mary assinaria embaixo de “Il faut voyager”, a canção que Moustaki compôs e gravou em seu disco de 1996, que diz “É preciso viajar, é preciso ir / Até lá, onde não se é ninguém, / Lá onde não se conhece nada. / Falar outra língua, ouvir outros ruídos, Provar outros frutos, viver outras lendas.
Gosto de brincar que, nesse quesito, especificamente, sou mais o George Harrison de “The Inner Light”: “Sem sair da minha porta / Posso conhecer todas as coisas do mundo. / Sem olhar para fora da minha janela, Posso conhecer os caminhos do paraíso. / Quanto mais longe se viaja / Menos se sabe.”
Mary passou anos dizendo que queria me levar a Paris, que ela visita mais do que atualmente vou ao Centro da cidade. Sempre resisti.
Uma noite, tardão, ela falou de novo sobre viagem a Paris. Eu já estava meio bêbado, e então falei algo tipo: “Tá, se você arranjar lugar num show do Moustaki eu topo”.
Coisa de bêbado.
Dias depois ela me chamou para mostrar no computador que dali a alguns meses, em outubro de 2003, haveria show de Moustaki no Olympia.
E então fomos.
Que diferença entre os dois shows.
O prazer, a emoção de estar no Olympiá! O lugar histórico, mítico, lendário, centenário, onde se apresentaram o próprio Moustaki e Jacques Brel, Yves Montand, Gilbert Bécaud, Barbara, Édith Piaf, e com toda certeza também Georges Brassens, Charles Trenet… Fora os Beatles, Paul Simon… O lugar em que Lelouch filmou cenas de Toda Uma Vida…
Olympiá lotadaço, lotadaço. Nenhuma das poltronas de veludo vermelho reluzante vazia.
Um público entusiasmado, entusiasta, admirador, que conhecia as letras todas.
Moustaki velhinho mas firme, lépido, fagueiro. Uma backing vocal brasileira linda, um ou outro brasileiro no conjunto afiado que o acompanhava. Moustaki feliz com um público feliz.
E, como Mary tinha comprado os ingressos com uma imensa antecedência, nos sentamos na sexta fila, no gargarejo.
Sou um sujeito de muita sorte, sorte demais. Já vi belos shows na vida. Ver Moustaki ao lado de Mary no Olympia foi uma experiência absolutamente maravilhosa.
***
Minha irmã Nilze é uma francófila exacerbada, fanática, xiita. E Moustaki é seu músico francês preferido. Tem absoluta paixão por ele. Certamente por isso, às vezes fico em dúvida se não teria sido ela a me aplicar Moustaki. Mas na verdade não foi. Foi Vivina, minha professora de francês no Aplicação, de vida na vida, amiga eterna, colaboradora (menos do que eu gostaria…) deste site.
Quando Vivina e Gilberto Mansur se mudaram para São Paulo, em 1968 (ele veio para trabalhar no Jornal da Tarde, e acabaria me levando para lá em julho de 1970), fomos praticamente vizinhos, eles num apartamento do início da Peixoto Gomide, a quatro quadras da Augusta, e eu numa pensão da Fernando de Albuquerque. Eu a visitava com freqüência; conversávamos, ouvíamos música: Nara, João Gilberto, Chico, Caetano – e Moustaki.
O primeiro disco de Moustaki lançado no Brasil, pelo selo Polydor, da então Companhia Brasileira de Discos, depois Phonogram, depois PolyGram, hoje Universal Music (se não estou enganado), era uma coletânea que reunia seis faixas dele e seis de Serge Reggiani. Com ele tinha “Le Métèque”, “Joseph”, “Ma Solitude”, “Le Temps de Vivre”, “Gaspard” e “Il est trop tard”. O lado do LP de Serge Reggiani tinha duas músicas de Moustaki, “Sarah” e “Ma Liberté”.
Foram as primeiras oito músicas dele que conheci.
São engraçados os caminhos da vida. Quando, agora, logo depois da morte de Moustaki, coloquei posts sobre ele no Facebook, Miryam Lúcia comentou, lá de Wellesley, na região de Boston, que aprendeu a gostar de Moustaki comigo, quando tinha 13 anos. Depois escreveu um emocionante comentário abaixo do meu texto sobre ele.
Miryam Lúcia (ela também colaboradora deste site, embora escreva menos do que eu gostaria) e eu nos conhecemos na casa da Vivina. Ela é sobrinha de Gilberto. Vivina me introduziu Moustaki, e lá mesmo na casa dela Miryam Lúcia o ouviu e se apaixonou por ele. Mas, na cabeça dela, ficou que quem a fez gostar dele fui eu, e não a tia.
Velhos amigos. Que maravilha, isso, velhos amigos. Outro dia, revendo When Harry Met Sally…, me emocionei quando, na cena final, Harry e Sally falam sobre o que afinal quer dizer a letra de “Auld Lang Syne”, e Sally dá aquele sorriso de Meg Ryan e diz: “Anyway, it’s about old friends”.
Velhos amigos comentaram meus postzinhos sobre Moustaki no Facebook. Miryam Lúcia. Deca Cezar, escrevendo de Chicago. Anderson D’Almeida. Samira Tabbakh. Todas elas pessoas que conheci nos meus primeiros anos de São Paulo, 1968, 1970 e pouquinho.
Moustaki emociona. Aproxima velhos amigos.
26 e 27 de maio de 2013
Le Métèque
(Georges Moustaki)
Avec ma gueule de métèque
De Juif errant, de pâtre grec
Et mes cheveux aux quatre vents
Avec mes yeux tout délavés
Qui me donnent l´air de rêver
Moi qui ne rêve plus souvent
Avec mes mains de maraudeur
De musicien et de rôdeur
Qui ont pillé tant de jardins
Avec ma bouche qui a bu
Qui a embrassé et mordu
Sans jamais assouvir sa faim
Avec ma gueule de métèque
De Juif errant, de pâtre grec
De voleur et de vagabond
Avec ma peau qui s´est frottée
Au soleil de tous les étés
Et tout ce qui portait jupon
Avec mon cœur qui a su faire
Souffrir autant qu´il a souffert
Sans pour cela faire d´histoires
Avec mon âme qui n´a plus
La moindre chance de salut
Pour éviter le purgatoire
Avec ma gueule de métèque
De Juif errant, de pâtre grec
Et mes cheveux aux quatre vents
Je viendrai, ma douce captive
Mon âme sœur, ma source vive
Je viendrai boire tes vingt ans
Et je serai prince de sang
Rêveur ou bien adolescent
Comme il te plaira de choisir
Et nous ferons de chaque jour
Toute une éternité d´amour
Que nous vivrons à en mourir
Et nous ferons de chaque jour
Toute une éternité d´amour
Que nous vivrons à en mourir
Lindo texto. Que bom que você viu um “real show” do Moustaki, no Olympia, em Paris e com a Mary ao seu lado. Quem disse que não podemos ter tudo? Algumas vezes temos sim, e esses momentos nos fazem bem pro resto da vida.
É verdade que já fui a Paris algumas vezes, menos que eu gostaria, mas com alguma frequência.
Mas ver Moustaki ao lado do Sérgio no Olympia foi uma experiência absolutamente maravilhosa.
Meu querido Sérgio, se bobear eu encontro nas minhas coisas em São João del-Rei o texto da letra de Ma Solitude com a sua letra… A Vivina ofereceu a casa e me apresentou ao aluno-amigo. Você me apresentou a Moustaki, assim como a Maria da Graça.. lol … e Caetano. Ficamos ali, na Peixoto Gomide, como se conversássemos em algum campo… cada palmeira da estraaaada… tem uma moça rescostada…. E de repente, Moustaki de novo. Eu já falei que você é o meu é o meu Anam Cara… amigo da alma, na tradição celta, conforme escreveu o grande John O’Donohue. Eu me lembro da pureza de aprender a gostar de você e de Moustaki ao mesmo tempo. “With the anam cara you could share your innermost self, your mind and your heart.This friendship was an act of recognition and belonging,” escreveu o”Donohue. Que sortuda eu fui aos 13 anos! By the way, adorei mais esse texto, e pense, você é quem faz Moustaki especial. É pra um público como você que a arte dele existe. Que bom que a Mary te levou pra vê-lo de verdade!
Pois é, Sérgio,
não devo estar lendo os jornais direito, porque a primeira – e única – nota que vi sobre a morte do Moustaki foi a da Veja, e só no domingo à noite. Como você vê, além de não ler direito, ando atrasada.
Sem atraso, meu pensamento, aquele que “parece uma coisa à toa” voou até você, a foto do Moustaki me dizendo que ali estava um cara que realmente havia enriquecido nosso convívio naqueles benditos – musicalmente, entenda-se bem – anos 60/70.
Sabe, Sérgio, hoje sei e sinto que não fui sua professora de nada, ainda que você acredite ter sido meu aluno. Nada te ensinei, aprendemos ao mesmo tempo, em salas de aula, em repúblicas de estudantes, em apartamentos iniciais, desconfortavelmente acolhedores. Em todos esses espaços, música, muita. Você citou Nara, Moustaki, Chico, Caetano, João Gilberto, pura verdade. Ah, éramos exagerados e privilegiados e não sabíamos. Os dois primeiros já nos alimentariam e aqueceriam.
Meu amigo eterno, te confesso que nunca foi fácil conviver com a falta e a saudade da Nara. E pena que a leitura da Veja tenha feito a fila crescer.
Seu texto é lindo e, consequentemente, comovente. Merci, por todos os motivos.E sigamos com nossos afetos musicais. Nada vale tanto a pena.
Beijo carinhoso
Vivina