Obrigado, Yusuf

O primeiro show que Yusuf/Cat Stevens apresentou no Brasil – no sábado, 16 de novembro, no Credicard Hall, lugar para umas 7 mil pessoas – foi absolutamente impressionante por uma série de razões.

Pela demora em acontecer. Cat Stevens encanta o mundo desde o final dos anos 60, início dos 70; nestes últimos 40 anos, praticamente todos os grandes astros da música pop internacional se apresentaram aqui. Ele morou no Rio de Janeiro, conheceu um pouco da música brasileira – e no entanto só agora, do alto de seus 65 anos bem vividos, nos deu a honra de incluir São Paulo e Rio em sua turnê mundial.

Pela simpatia, pela simplicidade, pela informalidade. Volto a falar dessas características mais tarde, mas, neste início de texto, creio que basta dizer que as pessoas daquela platéia seguramente jamais tínhamos visto um grande astro, de imensa fama mundial, tão simpático, tão simples, tão informal. Às vezes parecia que Cat Stevens não estava iniciando uma turnê de três apresentações num país gigantesco, numa imensa sala de espetáculos, e sim dando uma canja na casa de um de nós.

Pela extrema qualidade, profissionalismo, de sua banda. São apenas, além do próprio Cat Stevens ao violão e em alguns momentos ao piano, cinco músicos – teclado, baixo, bateria, duas guitarras –, mas era o suficiente, o bastante, para fazer um som forte, vigoroso, poderoso. E brilhante, agradável, melodioso. Tinha-se a impressão de que aqueles músicos nasceram tocando juntos. Uma afinação perfeita, à la Newton Santos, Garrincha, Didi do Botafogo dourado, à la Coutinho, Pelé e Pepe do Santos glorioso.

Pela emoção da platéia imensa; podia-se sentir a emoção, podia-se quase ver a emoção, espessa como neblina na Serra em dia de comboio. As pessoas choravam de pura emoção.

Pelo respeito que a platéia demonstrou pelo artista que a emocionava.

Mas o show foi absolutamente impressionante, sobretudo, pela qualidade das composições de Steven Demetre Georgiou, aliás Cat Stevens, aliás Yusuf Islam, hoje apenas Yusuf.

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zzzzyusufYusuf/Cat Stevens misturou canções do inicinho de sua carreira, ainda nos anos 60, com alguns dos mais absolutos sucessos dos anos 70 e com composições bem mais recentes, feitas após sua volta ao mundo da música pop, com o disco An Other Cup, de 2006.

Entre sua encarnação como Cat Stevens e sua volta como Yusuf, o camarada teve um hiato de mais de duas décadas. Foi um período longo, imenso, fora dos holofotes; não foi de silêncio total, porque gravou discos com trechos do Corão e canções de fundo religioso – mas foram mais de 20 anos sem compor música popular.

Pois é como se não tivesse havido esse período tão longo de quase silêncio absoluto.

As canções recentes estão à altura das da época de Cat Stevens, o ídolo pop.

Yusuf-ex-Cat Stevens elaborou com cuidado, rigor, inteligência, sensibilidade, uma set list impecável, que ia e vinha no tempo – e com isso realçou, deixou nitidamente à mostra sua própria genialidade como criador de melodias e letras, e sua capacidade de atravessar incólume a passagem do tempo, e a radical transformação de astro popular a muçulmano convicto, praticante.

A genialidade do compositor está acima e além da passagem dos anos. O artista maduro dos anos 2000 e 2010 mantém a força criativa de quando era um garoto de 20 anos de idade.

Ele já havia demonstrado isso em seus discos do retorno, An Other Cup e Roadsinger, este de 2009.

Na segunda faixa de An Other Cup, “Heaven/Where True Love Goes”, o sujeito misturou melodia e letra novas (“I go where true love goes, and if you walk alone and if you lose your way, don’t forget the One who gave you this today”) com um trecho especialmente belo da longa (18 minutos e 19 segundos) “The Foreigner Suite”, de seu álbum Foreigner, de 1973 (“The moment you walked inside my door I knew that I need not look for more”).

Canção do astro pop de 1973 com canção do religioso lançada em 2006 se misturaram à perfeição, como arroz e feijão, queijo e goiabada.

No show, ele e sua banda perfeita fizeram uma versão maravilhosa dessa junção de canções que é “Heaven/Where True Love Goes”. O som que aqueles seis sujeitos criam é de fato absolutamente impressionante.

Eu já disse muitas vezes que os engenheiros de som ingleses são os melhores do mundo. Os Beatles e Cat Stevens estão aí para provar. As gravações em estúdio de Cat Stevens são uma explosão de sons, ruídos, modulações, alternâncias de climas. Não precisam da tal da muralha sonora de Phil Spector para encher os ouvidos (e a alma) – e são tão poderosas quanto as produzidas pelo mago americano dos estúdios.

Pois Yusuf-Cat Stevens e sua banda de cinco músicos conseguem fazer ali, diante destes nossos olhos e ouvidos que a terra há de comer, o som perfeito que sai dos estúdios depois de muito overdub.

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Ele abriu o show com duas canções do iniciozinho dos anos 70. Entrou no palco sozinho, ele e seu violão acústico, e cantou “Moonshadow”, do disco Teaser and the Firecat (1971); já com os músicos no palco após a primeira grande explosão de aplausos e vivas, cantou “Where do the children play”, de Tea for the Tillerman (também 1971!).

Aí falou um pouco, como se estivesse conversando com uns amigos. Disse que, apesar de ser de noite, iria cantar uma canção nova que fala sobre os prazeres do dia – e apresentou “Midday (Avoid the City After Dark)”, a primeira faixa de An Other Cup.

Entre uma música e outra, fazia algum pequeno comentário. Disse que cantaria músicas feitas nos anos 60, inclusive a primeira que foi primeiro lugar nas paradas – e, de uma vez só, emendando uma na outra, apresentou “I Love My Dog”, “Here comes my baby” (acho; não tenho absoluta certeza) e “The first cut is the deepest”.

Depois voltaria aos sucessos do início dos anos 1970 – “The Wind”, “Bitterblue” (esta com um arranjo novo, completamente diferente do original, em andamento bem mais lento), “Sad Lisa” (em versão belíssima, ele ao piano, com um solo de violão espetacular), “Morning has broken” (que introduziu como tendo sido escrita não por ele, e sim por Ele, o Criador, usando o artista apenas como transmissor).

***

Foi lá pelo meio do show que Yusuf-Cat Stevens cantou “Maybe there’a a world”, outra faixa de An Other Cup, o disco do retorno. An Other Cup é um belíssimo álbum, e “Maybe there’s a world” é uma de suas mais emocionantes canções. É Cat Stevens puro, escarrado – uma bela, sinuosa, suave melodia, daquelas fáceis de a mente da gente pegar e não esquecer mais. Em um determinado momento, como em tantas outras canções desse melodista fabuloso, ela sobe, numa pequena explosão, e depois retoma a suavidade.

A letra é um hino de paz na terra aos homens de boa vontade, como o garotão de finíssima estampa já fazia quando muito jovem e era ídolo da geração que tinha acreditado que poderia mudar o mundo. É uma espécie de novo “Peace train”. Uma espécie do “Imagine” de John Lennon – menos cheia de certezas, um pouco menos determinada, determinante, mais esperançoso, mais de quem torce, do que imperialmente assertivo.

I have dreamt of a place and time

Where nobody gets annoyed.

But I must admit, I’m not there yet,

But something’s keeping me going.

I have dreamt of an open world,

Borderless and wide.

Where the people move from place to place,

And nobody’s taking sides.

Maybe there’s a world that I’m still to find?

Maybe there’s a world that I’m still to find?

Open up, oh world and let me in,

Then there’ll be a new life to begin.

E aí então, com a mesma naturalidade genial, ou genialidade natural, com que misturou numa única música uma canção sua de 1973 com outra de 2000 e tanto, Yusuf-Cat Stevens mixou seu hino recente que pede por um mundo que ainda não encontrou com nada mais nada menos que “All You Need Is Love”, o mais perfeito de todos os hinos por paz e amor e entendimento do fantástico, inigualável repertório dos Beatles.

Talvez exista um mundo que ainda não conseguimos encontrar – e tudo o que é preciso é amor.

A melodia de Cat Stevens fez um blend com a canção de Lennon-McCartney perfeito como o melhor uísque do mundo.

Não sei as outras, sei lá, seis mil e tantas pessoas privilegiadas que estavam lá naquela hora, mas para mim foi um dos momentos mais especiais que já vivi.

Mixed emotions. Um tanto de orgulho por pertencer à mesma raça daquele sujeito. Um tanto de estupor diante de tanta beleza. Um tanto de deleite puro. Um pouco de vergonha pela minha insignificância. Acho que foi uma das várias vezes ao longo do show de uma hora e meia em que me vi pronunciando as palavras “filho da puta” – sinal de absoluto encantamento diante de uma obra de arte.

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E ainda tinha muito mais.

Ao contrário da vida, o show de Yusuf/Cat Stevens não é composto por peaks and valleys, montanhas e vales.

Não há vales, no show. Há só montanhas – algumas mais altas que as outras.

Foi depois desse Everest que é a junção de “Maybe there’a a world” com “All you need is love” que ele apresentou “Heaven/Where True Love Goes”.

Já falei dessa junção das duas canções, mas falo de novo.

Na canção original, uma das várias melodias que se interligam ao longo dos 18 minutos e 19 segundos da “The Foreigner Suite”, ele dizia o seguinte, embalado por uma melodia que não deixa o corpo da gente quieto: “I’ve seen many other girls before, oh, but heaven must have programmed you”. Já vi muitas garotas antes, mas o céu deve ter programado você. “Programado.” Ele usou esse verbo em 1973, décadas antes das programações de computador. Visionário é visionário.

Mais de 20 anos fora do carrossel mais tarde, uma outra encarnação depois, o fiel de Alá simplesmente trocou a palavra girls pela palavra souls. “I’ve seen many other souls before, oh, but heaven must have programmed you”.

A frase do astro pop garoto prodígio, mediante a troca de uma palavrinha, almas em vez de garotas, cabe perfeitamente a um servo de Alá, como serviria para um de Jeová, de Deus, de Buda, Oxalá.

A melodia é a mesma que faz mexer tudo na gente. Enquanto o filho da puta cantava lá embaixo, eu dançava na cadeira. Em silêncio – em respeito ao artista e ao público perto de mim.

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Um público respeitoso, educado – neste país tão sem respeito, sem educação.

A platéia do primeiro show de Cat Stevens no Brasil excedeu no quesito respeito, educação.

Claro, houve os gritos de lindo, I love you, We love you. Mas vieram respeitosamente entre uma música e outra – não ouvi berros no meio das canções. Houve muita foto com os smartphones que produziam claridade e às vezes atrapalhavam quem estava atrás – e houve reclamações aqui e ali de quem se sentia incomodado com isso.

Mas, tirando esses pecadilhos, a platéia foi brilhante.

Diversas vozes acompanharam o cantor em alguns momentos. Mas só nos momentos em que isso era possível, era permitido, era até esperado.

Na imensa maior parte do tempo, a platéia ouviu Yusuf-Cat Stevens. Com respeito, educação – e aquela emoção tão forte que dava para sentir, quase dava para literalmente ver.

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O garoto Cat Stevens não parava quieto um único instante em seus shows, conforme a gente pode ver nos DVDs, no YouTube. Na Earth Tour 1976, gravada para a posteridade no belo DVD Majikat, o garotão parecia o que a gente chamava de sujeito com doença de São Guido – ou então um jovem astro pop que só conseguia agüentar a loucura com doses massivas de cocaína, ou algum outro elemento químico do tipo.

Yusuf lembra um pouco aquele garoto – mas só um pouco.

Ele não pára quieto no palco – mas seus movimentos são suaves, doces. A maturidade não traz apenas dores: pode trazer também suavidade, doçura.

Yusuf demonstra prazer em estar apresentando sua arte. Demonstra estar inteiramente à vontade – como se estivesse fazendo um sonzinho na casa de amigos.

De uma certa forma, no palco, Yusuf, aos 65 anos, maduro, renascido em Alá, é parecido com Paul McCartney e Bruce Springsteen, para citar dois gigantes que tive a honra e a sorte grande de ver. Os três estão ali no palco por prazer; gostam do que estão fazendo. É o contrário, por exemplo, de Bob Dylan. Dylan, o maior de todos, dá a impressão de que sobe no palco como quem dá-se ao carrasco, para usar a frase extraordinária de outro que vai ao palco por obrigação, e não por prazer, Chico Buarque.

Bruce tem genuíno prazer de estar no palco. Parece se sentir cumprindo um destino histórico reservado a ele, de dar prazer às multidões – ao mesmo tempo em que apresenta para elas canções sérias, que fazem pensar. Bruce é assim como um cruzado. Luta, corre, faz ginástica, sua a camisa bem suada. É o working class hero.

Sir James Paul tem genuíno prazer de estar no palco. Parece se divertir no ato de divertir as multidões. Como ele escreveu em sua canção maravilhosa, dificílima de se cantar (ele, o melodista autor de melodias fáceis de se cantar), “We can work it out”, a vida é curta demais e não há tempo pra asneira. A vida é curta – curta.

(Na minha opinião – e já escrevi isso antes –, os dois mais extraordinários melodistas da música pop feita no mundo depois de 1950 são Paul McCartney e Cat Stevens.)

Yusuf, ex-Cat Stevens, não faz o esforço de Bruce ou de Paul.

Canta para platéia de umas 5 mil pessoas como se estivesse cantando na sala de um amigo querido.

Uma hora lá, disse que tinha esquecido a letra.

Aparentemente, há um teleprompter que projeta as letras das canções numa tela colocada no chão, perto do artista, invisível para o público.

O pessoal da produção demorou um pouquinho para acertar a letra, para mostrar no teleprompter a letra daquela música que ele havia começado a cantar. Depois de algum tempo, ele disse: “É essa aí”. E então cantou – maravilhosamente.

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zazznoisQualquer fã de Cat Stevens poderia imaginar que “Peace Train” estaria no bis.

Chegamos àquele teatrão gigantesco situado naquela estranha cidade ao Sul de São Paulo cedo demais. Nossa única experiência anterior no Credicard Hall, para ver o show de Bob Dylan, tinha incluído uma viagem complicada, e então desta vez tomamos precauções excessivas, e chegamos cedo demais.

Numa das vezes em que saí para fumar antes do show, encontrei um casal de mineirinhos fumantes que tinha vindo de Belzonte única e exclusivamente para ver o show de Cat Stevens. O mineirim disse, no mais autêntico mineirês: “Se ele cantar ‘Peace Train’, volto pra casa feliz”. Diante da minha expressão de interrogação, ele explicou: “Na Austrália ele não cantou ‘Peace Train’”.

Em São Paulo o homem cantou “Peace Train” ainda no show. Última música do show, de arrebentar o coração – mas até o asfalto de Santo Amaro, ou de Riad, ou de Meca, se é que Riad ou Meca têm asfalto, está cansado de saber que sempre há bis.

E então o homem e seus cinco instrumentistas extraordinários voltaram, é claro.

Aí houve gritaria na platéia. Cada um pedia uma música.

Yusuf foi tranquilo. Disse algo mais ou menos assim: “Acho que sei qual vai ser agora” – e atacou de “Father and Son”.

Depois fez elogio à platéia e ao Brasil. Lembrou, mais uma vez, que havia morado no Rio de Janeiro, que gosta muito do país.

Aí ele fez a última mistura, o último blend da noite gloriosa.

Disse que espera muito do Brasil. Tem grandes expectativas quanto ao Brasil. Mas é preciso lembrar que este é um…

E entrou com “Wild World”.

***

Após “Wild World”, que encerrou o show, ouvi muita gente dizer que havia chorado de emoção.

Vi rostos com a mais nítida expressão de felicidade.

Mixed emotions: muita emoção, muita felicidade.

Mas, no meu caso específico, particular, pessoal e intransferível, tive ainda a alegria absurda de ter minha filha se aninhando no meu ombro quando o cara começava a cantar “Father and Son”.

Minha filha se aninhou no meu ombro num carinho explícito igualinho que nem Marina demonstra quando encosta a boca no rosto dela.

Dei um beijo nos cabelos da minha filha que ouviu Cat Stevens junto com a mamadeira.

Não tem preço.

17 de novembro de 2013

10 Comentários para “Obrigado, Yusuf”

  1. Lindo, pai! Obrigada por essas e tantas outras coisas que vieram na mamadeira. Te amo!

  2. Bela descrição.
    Me senti dentro do show.
    Confesso que senti uma invejinha branca.
    Queria muito ter ido…

  3. Eu sabia. Sérgio não poderia ter deixado de ir a apresentação de Yusuf em Sampa.
    Aguardei calmamente os comentários. Pelo excelente texto constato que o espetáculo no RJ vai ser muito bom. dia 20 no Citybank Hall a preços que custam de R$ 90 a R$ 950.
    Vou assistir, pago meia, estarei na platéia inferior.
    Yusuf e eu nascemos juntos, melhor dizendo, no mesmo dia e ano, com sua música e arte conseguiu dizer o que eu penso. Capacidade de dizer e expressar só poucos como Yusuf e Lennon.
    O que será que existe no Corão que possa ter levado Stevens a virar Yusuf?
    Escuto suas belas músicas e vou tentar ler o Corão.
    Sérgio o acompanhamento de Yusuf parece Tita,Adílo,Nunes,Zico e Júlio César, afinadíssimos.
    Espero que as reticências do texto não sejam a tal síndrome de vira lata.
    Você quando quer é ….! Nada fica a dever ao Vadim.

  4. Lamentavelmente Cat Stevens nunca esteve em Portugal e não creio que aqui venha; é bom de mais para uma grande parte do nosso público; vêm cá Madonna, Lady Gaga e toda a espécie de lixo. É o que merecemos.

  5. Amigo José Luís, às vezes me parece que você vai fundo demais no pessimismo!
    Sua pátria é a pátria de Camões, de Gil Vicente, de Pessoa, de Eça!
    De Amália, Zeca Afonso, Sergio Godinho, José Mário Branco, Madredeus, Dulce Pontes, Eugénia Melo e Castro!
    Tenho por sua terra a mais profunda admiração – e gratidão.
    Um abraço.

  6. E então, aproveitando:
    Miltinho, o que nos separa é apenas o PT. No resto, somos amigos camaradas cúmplices, como dizia o Moustaki.
    E, Fê, repito aqui o que disse só para você: sua mensagem fez o velho pai chorar de emoção e alegria.

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