O improvável mecenas

zzzzzzvitti

Eu quero bem que as ves­tais se lixem: a arte deve muito ao crime, à Mafia, a ban­di­dos sór­di­dos que, de repente, têm os seus momen­tos de non­cha­lance. Pelo menos o cinema deve. O cinema ame­ri­cano como o cinema euro­peu. Exceptue-se o actual cinema ale­mão… mas quem, em nome de Cristo, quer saber alguma coisa do actual cinema alemão?

Com a res­salva de algum pes­soal a morar em lares de ter­ceira idade, já nin­guém se lem­brará da “tri­lo­gia do silên­cio” que Anto­ni­oni fil­mou com Monica Vitti, a mais nór­dica das actri­zes ita­li­a­nas: olhos que a tenham visto, não lhe esque­ce­rão, nem que a terra os coma, a boca entre­a­berta (rara­mente res­pi­rava pelo nariz), o olhar ansioso.

Anto­ni­oni e a Vitti encontraram-se pela pri­meira vez num filme aus­tero e escasso, L’Avventura. Preto e branco, fran­cis­ca­na­mente finan­ci­ado, quando mais não fosse por­que o rea­li­za­dor só dizia aos pro­du­to­res que era a his­tó­ria de uma rapa­riga que desa­pa­re­cia numa ilha desa­bi­tada e nunca mais apa­re­cia. (E se os pro­du­to­res qui­ses­sem saber mais, saía-lhe um ar de vir­gem ofen­dida que só um doge de Veneza con­se­gue pôr.)

Fosse como fosse, uma troika qual­quer avan­çou uns tos­tões e Anto­ni­oni come­çou a fil­mar numa das ilhas Lípa­ras, na len­dá­ria e ima­cu­lada Sicí­lia. Era pouco e, a meio da roda­gem, o dinheiro secou. Nem para comer, nem para dor­mir. E ainda menos para ir embora. Nas ilhas, a sobe­ra­nia era exer­cida, com rela­tiva infor­ma­li­dade, diga-se, por Il Ban­dito. Esse homem, incar­na­ção local de tudo o que la legge possa ter de ima­nente e trans­cen­dente, gos­tou de Anto­ni­oni e do circo do cinema. Terá, tal­vez, sonhado com a neu­rose que os entre­a­ber­tos lábios da Vitti pro­me­tiam. Deu-lhes um tecto por ser dele a única pen­são, pôs-lhes pão na boca ou não fosse dele a única taberna. Durante cinco sema­nas, com a con­di­ção de nin­guém sair da ilha, Il Ban­dito foi um Médici, patrono de um cinema feno­me­no­ló­gico que Roma se recu­sara a financiar.

Houve mais mila­gres. Esta­vam a fil­mar em Lisca Bianca – uma ilha deserta – quando sur­giu, no hori­zonte, uma tromba mari­nha, um assus­ta­dor cone inver­tido. Anto­ni­oni, exal­tado, quis incor­po­rar a “apa­ri­ção” no filme e estava dis­posto a tudo (danassem-se céus e infer­nos) para ter a ima­gem mais pró­xima que pudesse.

Mas a bela Vitti de olhos azuis, quando os locais lhe dis­se­ram que a tromba os des­fa­ria a todos, entrou em pânico. “E che si fa?”, per­gun­tou. Um dos homens, Bar­tolo, sabia la parola, uma reza ritual para ata­lhar a negra ame­aça. Vitti implorou-lhe que usasse os impro­vá­veis dons. Conta ela: “Ele levan­tou a perna esquerda e cruzou-a com a direita, fez o sinal da cruz, mur­mu­rou a fór­mula e, acre­di­tem ou não, a tromba desa­pa­re­ceu.

Anto­ni­oni atirou-se ao mafi­oso. Quis matá-lo. O ver­da­deiro artista morde sem­pre a mão do mece­nas que lhe dá de comer.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

6 Comentários para “O improvável mecenas”

  1. Eu até tenho idade para viver num lar de terceira idade mas, graças a Deus ou ao Diabo, vivo na minha casa e desse Anto­ni­oni não me lembro de nenhum filme excepto um – Blowup – e que mais valia nunca ter visto; não teria passado várias horas a tentar compreender o filme.

  2. Para entender Antonioni, só o Manuel. Seria legal se comentasse Blow-up.

  3. Pois também acho, talvez assim eu começasse a vislumbrar qualquer coisinha do significado do filme.
    Já li muitas críticas mas nenhuma me esclareceu o essencial – o que conta o filme? Ou se não contando nada o que faz ou para que serve?

  4. O filme trata do real e do imaginário. Do interno e do externo. Houve ou não o crime fotografado? O final é antológico, por não dizer antoniano. O fotógrafo se dá conta que a realidade não passa de imaginação, o jogo de tênis imaginário da geração hippie. Ele entrou no jogo e devolveu a bola.
    Não sei se o Manuel assim entendeu, com a palavra o mestre.

  5. Agradeço o seu contributo caro Miltinho mas fico na mesma.
    Vou transcrever o que escreveu um compatriota que é realizador, professor de cinema e etc..

    “Ora, eu penso que é preciso voltar às coisas básicas. O que se pede a um filme? Antes de mais, que nos conte uma história, «com princípio, meio e fim», como mandava Aristóteles, o pai da crítica de cinema. Depois disso, o critério para o apreciar é simples: é preciso que, do princípio ao fim, nunca se interrompa aquilo a que Coleridge chamou «the suspension of disbelief», isto é, a ilusão de que aquilo a que estamos a assistir se está mesmo a passar, naquele momento, à nossa frente. O que implica duas coisas: nunca nos aborrecermos nem perdermos o fio à meada. Tão simples quanto isto.

    Depois, convém que o filme nos acrescente alguma coisa, que seja uma experiência enriquecedora, que nos abra horizontes, que nos ajude a compreender melhor o mundo, e que, por isso, nos suscite o interesse em conhecer melhor o autor e a sua obra. E os críticos, que papel têm nisto tudo? Simples. Deixar-se guiar, sem preconceitos, pelos mesmos critérios, ajudar-nos a identificar os bons filmes e a ver mais longe. Sem perder de vista que, como dizia Éluard, «os artistas dão-nos olhos novos e os críticos óculos para vermos melhor».”
    António Pedro Vasconcelos
    Ora aqui está:
    Acrescentar – nada
    Enriquecedora – nada
    Novos horizontes – nada
    Compreender – nada

  6. José Luis, sou mero espectador mas o filme em questão atendeu minhas expectativas, tem a meu ver começo. meio e fim.
    Com a ajuda de Manuel S.Fonseca possamos, eu e você, ver um outro filme.
    Os críticos de cinema sempre enxergam outro filme, daí serem importantes para a sétima arte, recriam.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *