Em um dia de 1957, um enorme bloco de gesso despontou acima dos muros de uma casa da Rua João Dias, em Santo Amaro. Nos dias e meses seguintes, as pessoas que passavam por essa movimentada rua viam o escultor Júlio Guerra trabalhando no gesso com uma machadinha. “O que será que vai sair daí?”, perguntavam-se.
Aos poucos, e ao longo de seis anos, foi se consolidando a figura de um homem de botas, chapéu, gibão (aquele casaco de couro), e bacamarte, o avô da espingarda. Uma figura do século 17, que agora todos sabiam ser de um dos ilustres filhos de Santo Amaro, o bandeirante Borba Gato.
Desde que foi inaugurada, em janeiro de 1963, à entrada de Santo Amaro, a estátua de quarenta toneladas e dez metros de altura (treze, contando o pedestal) provocou reações das mais diversas. Menos a indiferença. Muitas pessoas consideram o bandeirante hirto, em posição de sentido, com sua cobertura de pedras e pedacinhos de mármore, uma obra de mau gosto.
A maneira de ser de Júlio Guerra explica por que fez a obra dessa forma. Poderia ter produzido um bronze, como a notável e premiada mãe preta que amamenta seu filho no Largo do Paiçandu. Mas, como sempre dizia, criava suas obras na hora em que quisesse, e como quisesse. Afinal (outro dito) nascera vagabundo e vagabundo tem tempo para tudo.
Apesar de seu renome e dos prêmios que ganhou, aqui e no Exterior, definia-se como um artista amador. Pois faço o que gosto, repetia, e não o que as pessoas querem pagar para que eu faça.
Essas palavras são recordadas hoje pela filha de Júlio, Elza Guerra Sanches. Com o Borba Gato, ela nos conta, o pai fez mais uma vez o que quis. Neste caso, uma obra destinada ao povo. Enquanto a produzia, chamava pessoas do bairro, “não gente estudada, intelectuais, mas pessoas humildes”, e pedia a opinião delas.
A estátua do bandeirante foi assentada na Avenida Santo Amaro, esquina com a Rua Adolfo Pinheiro. Deveria ter ficado pronta em 1960, quando o bairro, que já foi município, comemorou seu quarto centenário. O que retardou a conclusão da obra foi uma tragédia.
Em 1958, no primeiro ano de trabalho, Júlio perdeu seu filho Jairo, de 14 anos. O rapazola afogou-se na Represa Guarapiranga, onde moradores do bairro tinham momentos de lazer. Elza diz que naqueles momentos o pai já avançava nas formas do bandeirante. As botas e outros detalhes estavam prontos. O sofrimento fez com que largasse tudo. Chegou a procurar tratamento de saúde. Com o tempo, voltou ao Borba Gato.
A estátua foi esculpida em um grande terreno, que é o quintal da casa da Rua João Dias. Essa área e a dos vizinhos veio de herança, o que significa que todos eram aparentados. Júlio trabalhava sob os olhares atentos das crianças da família. Quando terminou de esculpir o gesso, recortou-o em várias partes. Tirou moldes, também de gesso, de cada peça, e começou a assentar dentro deles as pedras que iram revestir a estátua.
A criançada queria participar. Júlio deixava que assentassem algumas pedras. Ou que um menino calçasse uma bota, que lhe servira de modelo. Os moldes de gesso levavam uma camada de cimento. Completado o trabalho, o molde era quebrado e surgia a peça de cimento revestida com as pedras.
O escultor perdera a mãe muito cedo. Fora criado pelo pai e por uma avó, que morava em outra casa. Dizia que é a mãe quem cuida da criança; o pai não liga tanto. A memória da infância, acredita Elza, a filha, explica o carinho de seu pai pelas crianças que se envolviam o Borba Gato.
No quintal da casa não havia plantas. O gesso das peças espalhadas por lá, de várias obras, não permitia que crescessem. Entre as lembranças de Elza está a de brincar de casinha em cima de uma peça de gesso que o pai não usava mais.
O Borba Gato é oco. Tem quatro respiros de ar para evitar a dilatação do material. O que o sustenta são trilhos de trem em seu interior. Dois verticais, acompanhando as pernas, e um horizontal na altura dos ombros. Júlio não gostava da informação de que a estátua tinha pastilhas – porque só tem pedras. Um aprendiz de escultor, o hoje pintor e restaurador Algacyr da Rocha Ferreira, ajudou Júlio no trabalho com o Borba Gato. Via o escultor quebrar ele mesmo as pedras, “que depois guardava, separadas por cores, em frascos de bala”.
Entre pedras de várias origens, as que recobrem o gibão vieram de Congonhas e de Ouro Preto, em Minas Gerais. As do rosto são fragmentos de mármore rosado, de Portugal. Também foi usado mármore branco do Paraná.
Júlio, morto em 2001, aos 89 anos, nasceu em 20 de janeiro de 1912, em Santo Amaro. Na infância, costumava ir à chácara de um de seus tios, às margens do Rio Jurubatuba, como se chamava então o Pinheiros. Passava muito tempo mexendo com o barro das margens. Moldava figuras… Outro lugar em que se demorava era o bar e bilhar de seu pai, no número 1 do Largo Treze de Maio. Aqui, desenhava. Copiava as ilustrações debochadas de O Malho, uma revista de humor de muito sucesso.
Um amigo do pai indicou o caminho da Escola de Belas Artes, que ficava no prédio da Pinacoteca do Estado, no bairro da Luz. Ali Júlio descobriu o curso de escultura, e foi nele que se matriculou. Era 1930. Logo nos primeiros tempos tomou uma decisão. Homenagear, com obras suas, três ilustres santamarenses.
Seriam o padre Belchior de Ponts, que nascera às margens do Rio Pirajussara, e catequizara índios. O poeta Paulo Eiró (“Hora de perdição! Sim adorei-a;/Não tive horror, não tive sequer medo/De cobiçar uma mulher alheia.”). E Manuel Borba Gato, bandeirante que acompanhou o sogro, Fernão Dias Pais, na busca de esmeraldas e acabou achando ouro.
O aluno formou-se, e continuou na escola, como professor. Uma de suas obras dessa época é o túmulo da família Carlos Schmidt no cemitério de Santo Amaro. Um Jesus Cristo em bronze, deitado, é consolado por Maria. Certo dia, Júlio desistiu do trabalho de professor. O problema era ter que se sujeitar a horários. Ele era muito livre, diz Elza, não gostava de horários.
Em 1942, foi convidado para trabalhar com Victor Brecheret (1894-1955), autor do Monumento às Bandeiras (1953, Ibirapuera). O artista ítalo-brasileiro ocupava-se de esculpir a colossal estátua equestre de Duque de Caxias, que seria erguida na Praça Princesa Isabel. Com ele Júlio aprendeu muito, diz Elza, inclusive disciplinar-se.
Os anos passaram, e Júlio foi deixando sua marca por Santo Amaro. O mural de mosaico de cimento armado, dezoito por cinco metros, na fachada do Teatro Paulo Eiró. O Monumento aos Romeiros, em frente à Casa da Cultura. Iguatinga, bronze de uma musa nua. Diversas obras, também fora do bairro, como a Mãe Preta (na foto abaixo), no centro, e em outros Estados.
Em um cômodo de sua casa, que usava como ateliê, fazia pequenas réplicas (20, 30 centímetros) de suas obras mais famosas. Eram doadas, ou vendidas. Também pintava cópias de seus quadros, a pedido de pessoas que se encantavam com eles. O tema era sempre Santo Amaro antigo. Apesar de conseguir ganhos com essas produções, Júlio considerava difícil viver de arte. Mas ganhou muitos prêmios, em dinheiro, em salões onde expôs, dentro e fora do País. Na verdade, nunca teve problemas financeiros “Ele pôde viver livre, porque nosso pai tinha posses.”
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“Do Borba Gato para o Sul é Santo Amaro até Itanhaém.” Esta descrição feita por Alexandre Moreira Neto, presidente do Centro de Tradições de Santo Amaro, reflete a situação de 1963, quando a estátua foi inaugurada. Nos dias de hoje, o bairro perdeu a divisa com a cidade do litoral sul. Está dividido em subprefeituras, como as de Capela do Socorro e Cidade Ademar.
Júlio Guerra, que esculpiu a estátua, se orgulhava de ser um caipira, um botina amarela, assim como acontece com Alexandre. Os termos pejorativos, para definir o pessoal da roça, que tinha a botina suja de barro, passaram a ser símbolo dos santamarenses da gema. Criou-se até o troféu Botina Amarela.
O amor de Júlio pelo bairro, onde nasceu, transparece na sala que leva seu nome, inaugurada em 2002, no Museu de Santo Amaro. As telas expostas retratam lugares do bairro como eram antigamente, destacando-se o Largo da Matriz (hoje Treze de Maio). Na sala também estão alguns objetos de Júlio e pequenas réplicas em bronze que fez de suas mais conhecidas obras.
Esta reportagem foi originalmente publicado pelo Diário do Comércio.
Devo registrar que me permiti uma brincadeirinha na linha fina abaixo do título. Paulistano por opção há exatos 45 anos ( os duros primeiros seis meses passados em Santo Amaro, hospedado pelo meu irmão Arnaldo), sempre me refiro ao lugar como “aquela cidade ao Sul de São Paulo”. De vez em quando, em ocasiões especiais, como para ver o show de Bob Dylan, até viajo até lá. (Sérgio Vaz)
Bela e providencial reportagem sobre a cidade ao sul de São Paulo. Sempre me impressionou a estátua do Borba Gato, como o redentor no Rio de Janeiro, adquiriram personalidade própria e projetam cada qual imponente respeito e marcam indelével o local onde foram erguidas.
Bom conhecer o escultor Julio Guerra e saber da sua origem santamarense. História deliciosa retratada oelo não menos deliciosao tetxo do Valdir Sanches.
Meus cumprimentos ao editor.
Curiosidade apenas. O nome é Borba Gata ?
Ops! Foi mal, hein? Obrigado por chamar minha atenção para o erro, Miltinho! Já corrigi. Um abraço!
Sérgio
Continuo te seguindo, sempre!
Outro abraço.