A ponta e mola brilhou numa noite dos meus 14 anos. Voltei a vê-la em The Outsiders e Rumble Fish de Francis Coppola, filmes que depois me mostraram o espectáculo da morte a que aos 14 anos não assisti. Mas conto.
A faca enterrou-se na carne macia e jovem. Subiu, cega e oblíqua, da barriga para o estômago. Eu morava dois quarteirões adiante e estas coisas aconteceram em Luanda. Foi a primeira vez que a palavra morte apagou um rosto do resto dos dias da minha vida.
Como o Matt Dillon de The Outsiders, o V era mais velho do que eu. Dois anos, um mundo de diferença. Mas fazíamos junto, a pé, o caminho do Liceu Salvador Correia ao cinema Império. Morava, defesa civil ao lado, nas moradias alinhadas entre as traseiras do cinema e a Estrada de Catete.
Tudo terá acontecido para que Coppola filmasse em Outsiders, com liberdade poética, a cena em que Johnny, quase uma criança, mata um miúdo do bando inimigo, salvando Ponyboy, o melhor amigo. Nessa noite que ainda não sabia ser a última, V andava também em bando – sempre em bando. Julgaram surpreender um ladrão. Larápio só, não ladrão de colarinho e off-shores como hoje se conhecem. Era um miúdo do musseque, animado pela vontade de risco, pelo orgulho de deambular no bairro branco. Vinha em rito de iniciação. A inútil e essencial coragem adolescente.
Como Ponyboy e Johnny, o miúdo do musseque, sentindo o cerco, passou a acossado. Imagino que tenha ficado animal encolhido entre muro e sebe, a respiração a ferver, músculos tensos até doer, pronto para ser invisível e lutar. Matar, se fosse preciso. As sombras brancas corriam, sem que nenhuma o visse. Imagino que V o tenha apanhado de surpresa, num tempo sem som, igual a uma tontura, o mesmo tempo insonoro que Coppola mostrou em Rumble Fish.
Mais apto, mais rápido, o miúdo, jovem máquina de luta de musseque, espetou-lhe na barriga uma facada darwiniana. De baixo para cima, irremediável. E correu, flecha entre as árvores, perdendo-se na anónima meia-noite dos trópicos. Voltou a casa, aos seus, à adormecida mãe na esteira. Respiração a mil, mas de coração livre e sobrevivente. No chão do bairro branco ficara estendido o menino de outra mãe.
Soube no dia seguinte: mataram o V, o V morreu.
Em Rumble Fish, Rusty James (Matt Dillon) é esventrado à traição (*). Vemos o corpo separar-se do corpo. Um corpo flutuante, que hesita ainda, com pena do frio vulto que jaz em terra, mas já com vontade de descobrir celestiais nuvens de aventura e desconhecido. Em Rumble Fish o corpo volta ao corpo. Em Luanda, em vez do apelo de lutas, namoros, farras de sábado, uma bebedeira na Ilha, o corpo flutuante de V escolheu o desconhecido. Escolheu harpas e arcanjos, ou esse rumor cósmico que é som e não é som e que torna toda a metafísica inútil.
(*) P.S. — Não é nada quando é esventrado, É antes, numa cena em que leva uma sova homérica num beco. Quem me manda escrever artigos só a fiar-me na gasta memória?! Antes me fiasse na Virgem. Diga-se que isso não muda uma vírgula ao espírito da crónica.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Rumble Fish, no Brasil O Selvagem da Motocicleta.
The Outsiders, no Brasil Vidas Sem Rumo.
As sublimes mortes, relatadas por analogia cinematográfica do Manuel, misturam a realidade da morte de V com a ficção em Rumble Fisch. Ficou-me a curiosidade de saber o que seria uma facada darwiniana?
A facada darwiniana é a que é dada pelo mais apto ao menos apto. Por aquele que vai continuar a espécie liquidando o que, óbvio, a não continuará.