Invento o cais

Quando a vida lá fora se faz quase insuportável, quando o mundo pesa nos ombros, a primeira coisa que faço é abrir a tela do computador e me envolver na imagem da Clara e do Lucas no colo do avô. É um oásis, uma vereda no grande sertão de minha  vida. Faço como Ronaldo Bastos e Milton: invento o cais.

Procuro aqui e ali histórias, livros e canções que me aliviem. Fico aberto para as belezas, mesmo pequenas, que o cotidiano me traz. Assistindo a uma entrevista do Toquinho e do grande Zuza Homem de Melo falando sobre Vinícius de Morais,  pude dormir tranquilo no primeiro dia de horário de verão, esse incômodo que nos impõem durante quatro meses, todos os anos, desde os tempos do Marechal Castelo Branco.

Toquinho falou da letra de “ Tarde em Itapoã”,  letra que Vinícius fizera para entregar a Dorival Caymmi. Na hora de embarcar para uma viagem a São Paulo, vendo a letra presa na pequena máquina de escrever do poeta, o violonista surrupiou-a com a intenção de musicá-la. Quando se encontrou novamente com Vinícius, percebeu que ele tentava refazer o que escrevera. Quando soube da travessura do jovem parceiro, mesmo zangado, o poeta se dignou a ouvir o que ele aprontara com seu texto. E acabou aceitando e incorporando ao seu repertório. Ouvindo a canção, enquanto o sono da noite não vinha, imaginei que o acontecido fora bem feito, pois Caymmi dificilmente iria musicar uma letra em que a praça em sua homenagem era citada.

E o Zuza, um dos maiores conhecedores de música popular, um homem musical e generoso, lembrou fatos e feitos do poeta centenário. E ressaltou que foi com  Vinícius, a partir dele, que jovens talentos se envolveram na arte de escrever letras de canções, elevando a qualidade poética do cancioneiro brasileiro.

Claro que já existiam exemplos marcantes como a obra de Noel Rosa,a cada dia que passa mais reconhecida, e as incursões bissextas de Manuel  Bandeira em parcerias com Villa Lobos e Jaime Ovalle. Mas foi com Vinícius de Morais que, de repente não mais que de repente, uma geração de rapazes e moças de nível universitário, bons na escrita e bons de ouvido, se lançaram na aventura  de compor um repertório de qualidade e quantidade que embalou e embala até hoje os corações brasileiros.

Para melhorar de vez o dia, assisti, aconselhado por meu amigo e parceiro Geraldo Vianna,   à Lenda do Santo Beberrão, belo filme do italiano Ermanno Olmi.

Foi aí que eu me lembrei:   na criação da obra prima “Cais”, há uma história semelhante à  de “Tarde em Itapoã”. E foi para o bem de todos nós.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em outubro de 2013. 

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