Se um dia se escrever a história do “Baixo Augusta”, será indispensável registrar também a pré-história desse fervedouro da noite paulistana – e, nela, abrir vasto capítulo para o inesquecível pioneiro que foi, ao longo dos anos 80, o Spazio Pirandello, no 311 da Rua Augusta. Boa parte está contada no livro Spazio Pirandello – Assim era, se lhe parece, de um dos ex-donos da casa, Wladimir Soares, mas certamente há muito mais o que acrescentar.
De minha parte, a primeira de fartas lembranças fortes é a da noite de janeiro de 1980 em que ali estive, com uns colegas, para beber e chorar mágoas. Motivo para conjugar os dois verbos não faltava. Chegara ao fim uma aventura que por seis meses nos apaixonara e consumira: o Jornal da República, miragem em torno da qual Mino Carta havia reunido marujos de alto coturno – Claudio Abramo, Clóvis Rossi, Ricardo Kotscho, Nirlando Beirão, Roberto Pompeu de Toledo, Paulo Markun, tantos mais – e que, mesmo com tripulação de primeira, naufragou.
Foi essa ressaca que levamos naquela noite ao Pirandello, aberto dias antes por Wladimir e o ator Antonio Maschio (na foto) na porção mais fuleira da Augusta, num sobrado onde, dizia-se, o jovem Oswald de Andrade afiou os dentes para a Antropofagia. À guisa de engov para almas escalavradas, os anfitriões ofereceram aos sem-jornal uma taça de champanhe – delicadeza e hospitalidade que seriam distintivos do Pirandello nos 10 anos em que esteve sob seu comando.
Havia outros, como a irreverência e a criatividade, especialmente saudáveis num momento em que se vislumbrava o fim da ditadura. Que Brasil aquele! Com a anistia, voltavam os exilados, e um deles, Fernando Gabeira, desafi(n)ava a rigidez dos companheiros ao lembrar, não só com sua tanga de crochê, que fazer revolução é mais do que depor uns generais. A aids, de que se começaria a ouvir falar em 1983, ainda não pusera freio na liberação sexual – da qual o Pirandello era reduto escancarado, quando a vizinha Rua Frei Caneca não era ainda rima para gay.
Impossível esquecer cenas como a que presenciei num fim de noite, quando, o serviço já encerrado, um companheiro de mesa pediu ao garçom mais uma vodca. Sem lhe dar tempo de depositar o copo sobre a mesa, ele avançou no ar uma língua ávida e saburrosa – e, com impassibilidade vacum, olhos semicerrados, se pôs a lamber meticulosamente a mão do garçom, o qual, excedendo-se no profissionalismo, a manteve estendida, trêmula mas não muito, o bastante para que se pudesse ouvir um nervoso chacoalhar de gelo no cristal do copo.
Num tempo de “bares ideológicos” (o Pauliceia 22 era ninho do Partidão, e o Bar da Terra, de trotskistas), aquele era ecumênico. No mesmo lugar onde se gestou a Campanha das Diretas, podia-se, na Sexta-feira Santa, tomar sopa de hóstia (não-consagrada). Chegou ali, antes que em muita redação, a notícia de que Tancredo não tomaria posse no dia seguinte. Era uma quinta-feira e eu estava lá, com Sonia Goldfeder e Flaminio Fantini, ressarcindo-nos de mais um pedregoso fechamento na IstoÉ.
Fomos nós que, não de Brasília, onde rolava o drama, mas daquele bar, comunicamos a novidade ao editor da revista. Em seguida, encharcados de excitação cívico-etílica, saímos pela noite, ansiosos por saber como a notícia batera em cada bar ideológico. O que não nos impediu de às 9 da manhã estar na redação, incorporados ao mutirão da reportagem sobre a não-posse de Tancredo. Assim prosseguiríamos por semanas, durante as quais boletins triunfalistas davam conta de crescentes melhoras no estado de saúde do presidente eleito. A pátria cruzara os dedos com tanta fé que alguém – no burburinho do Pirandello, exatamente – chegou a afirmar: só um milagre poderá matá-lo!
Nas velhas paredes do bar, em 1980, Vania Toledo expôs fotos de homens nus, alguns deles habitués da casa. Lembro-me do ar blasé com que o pessoal fingia ignorar os pingolins ao vento – até que chegassem três senhoras finas, com aqueles cabelos azulados de tia-avó, e, desinibidamente, se pusessem a admirar a anatomia da rapaziada.
Só mesmo no Pirandello.
(*) Este texto de Humberto Werneck foi publicado no Estadão, em 21 de abril de 2013. Republico aqui momentos após saber da morte de Antonio Maschio. Tenho certeza de que Humberto não se incomodará.
O Pirandello fez parte da vida de todos os jornalistas de São Paulo nos anos 80 – de jornalistas, de atores, de políticos, de boêmios de todos os tipos. Mas foi só um pequeno capítulo da vida dessa criatura excepcional que era Antonio Maschio.
Além da carreira de ator, Maschio teve participação importante na política do país ao longo de décadas. Foi um ativista fundamental na campanha das Diretas-Já, organizando leilões de objetos de arte para arrecadar fundos para a divulgação do movimento, desde seu início. Foi o autor da idéia de adotar o amarelo como a cor símbolo da campanha.
Emprestou ao PSDB de São Paulo, nas mais diferentes ocasiões, seu poder de aglutinar pessoas, arrecadar fundos para campanhas. Colaborou intensamente com as campanhas de Mario Covas para o governo paulista. Nos últimos anos, infelizmente, o partido a quem dedicou tanto – e que, além de possuir alma torturada, sabe também como ser profundamente ingrato – não soube demonstrar gratidão por tudo que ele fez.
Entre o período do Pirandello e o retorno a São Paulo nos anos 90, passou uma temporada em Tiradentes: foi um dos empreendedores que transformaram a belíssima cidadezinha colonial de Minas em um dos pólos gastronômicos e turísticos do país.
Uns dois anos atrás, na casa de Lu Fernandes, amiga comum, um grande grupo se reuniu em torno de Maschio para ouvir suas deliciosas histórias, contadas de maneira deliciosa. Comentei com ele, depois, que eu gostaria de escrever sua biografia. Como é – é difícil usar o verbo no passado – uma pessoa de extrema gentileza, ele, apenas por gentileza, disse que gostaria que sua biografia fosse escrita por mim. “Por você ou pelo Humberto Werneck”, acrescentou.
Pensei em escrever um texto em homenagem a ele. Mas aí reli a crônica acima, e percebi que Maschio merece texto muito melhor que o meu. Por isso republico o de Humberto. (Sérgio Vaz)