14. Sereias, caminhões, a felicidade da criança abrange mais de um capítulo
É reconfortante perceber que minhas perdidas alegrias ultrapassam um capítulo. Pois, o que vier após as lembranças dessas manhãs de brincadeiras, mais parece uma noite de pesadelos.
Há lembranças daquele tempo que são tão iluminadas, tão quentes, tão mágicas, que penso, sem exagero, serem suficientes para toda uma vida. Talvez não representassem nada para qualquer outra criança. Para nós, ali, despidos de tudo que fosse considerado supérfluo, para nós, pequeninos Diógenes na marra, sem cuia para beber água e com um colchão esfarelado como tonel, para nós, bastava um pedaço de barro. Um pedacinho de pau. Um chão. Medalhas seriam surrupiadas e colocadas em fila em algum alfinete. Bolas de gude acabariam nas sacolinhas inchadas dos mirolhas. Papel para pipa e bola eram mistérios a que não tínhamos acesso, pertenciam, por uma desconhecida ordem natural das coisas, aos mais velhos. Não me lembro de ter jamais cogitado se eu teria ou não direito àquelas maravilhas. Havia de ser daquele jeito e isso era tudo.
Nós, menores, nos perdíamos esquecidos dentro de nós mesmos, desenhando no chão. Aos poucos iam sendo montados painéis primitivos, como é fácil, então, compreender a arte pré-histórica. Nada de sagrado, nada de tabu, nada de magia. Desenhávamos, porque, nalgum acaso, descobrimos que era possível desenhar. A única palavra que admito poder ser aplicada àquela situação é Identificação. De um modo ou de outro, cada uma daquelas manifestações indicava um objeto com o qual nos relacionávamos, emocional ou intelectualmente, consciente ou inconscientemente. Alguém conseguiria descobrir para que serviria aquilo?
Fala-se muito em função pragmática da arte, função naturalista, função social… Penso nos habitantes de Altamira, esfregando pozinhos coloridos nas paredes da gruta. E, agora, observando, do lado de cá do muro, aquele bando silencioso e distraído de crianças a desenhar no chão, me parece estar diante do nascimento de algo gratuito e lúdico, com intenções indefinidas e desconhecidas delas mesmas, escapando à finalidade consciente.
Desenhávamos sereias e carros. Mais sereias que carros. Primeiro, a areia era alisada, tiradas as pedrinhas, afastados os lixos. Depois, o dedo corria rápido e já se montava uma multidão de sereias. Sem cenário, sem proporção entre as figuras. Cada um daqueles desenhos era suficiente a si mesmo, não se ligava a outro e, se nalgum momento, a cauda de uma sereia esbarrasse no rosto de uma outra já terminada, passava-se por cima, havendo superposição das imagens. O que interessava era o desenho enquanto ia sendo desenhado. Terminada a figura, a ânsia de uma nova criação abandonava o filhote recém-nascido e principiava outra criatura.
O forte, porém, era a nossa cerâmica. Fazíamos figurinhas de barro. Bois, cavalos, lembro de um cachorro, lembro que algum dos amigos fez um cachorro sentado sobre as patas traseiras. Os cangurus tinham na bolsa as minúsculas carinhas dos canguruzinhos. Os elefantes tinham as trombas, ora caídas, ora levantadas sobre as cabeças. Muitos patos, sempre com as asas abertas. Patos, marrecos, gansos, cisnes, era uma ave que representava a todos.
As estatuetas eram moldadas e o barro rachava rápido. Molhava-se o dedo com cuspe, para alisar, e logo os dedos e os lábios se apresentavam marrons, pela sujeira do barro. Depois, as figuras iam para o sol, endurecer. Não me lembro de brincar com aquilo. Lembro de fazer as figuras, depois, esquecê-las.
Os nossos carrinhos, porém, transformavam todo o resto numa coisa distante e inútil. Ficávamos horas e horas moldando com capricho os nossos automóveis, ônibus e caminhões.
Com o tempo, fomos ficando mais sofisticados. Não me lembro de alguma idéia original que tenha partido de mim. Sempre imitei os outros, minha timidez tolhia completamente o impulso pessoal. A primeira marca de originalidade, foram as rodas com eixo de madeira. Fazíamos o carrinho, as rodas, e ligávamos as mesmas ao carro, através de um palito que se fixava ao chassis por meio de um pedacinho de barro. Depois de seco, era possível movimentar o veículo. Acho que Valdemar fez um ônibus oco, colocando vidros nas janelas. Seguiu-se uma série de ônibus ocos, com vidros multicores. O genial foi quando Hermes fez a frente do carro oca, colocando palitinhos enfileirados, imitando as grades de um radiador. Era um trabalho demorado e carente de precisão. Mas o resultado era capaz de encher de encantamento toda a semana.
Não restam se não dois detalhes dessas horas alegres. As pedras de fogo e o córrego.
De vez em quando toda a meninada guardava pedrinhas de fogo pra esfregar uma na outra, durante a noite. A faísca, rápida e fraca, tinha o valor de uma moeda de ouro. O barulho é que era chato. E como a mania pegava, antes de dormir era aquele martelar sem fim, aqui e ali, pirilampos sonoros, estalidos luminosos, pequenas luzes efêmeras e barulhentas. Cada um se comprazia na própria obra, aguardando com ansiedade o acaso feliz em que o esfregar produzisse uma faísca mais forte. Um berro, não sei de quem, silenciava aqueles sapos de pedra. No dia seguinte, eles tornariam ao concerto de luzes, até que o berro novamente silenciasse as pedrinhas. Dormia-se no meio de um cheiro que eu cismei em classificar como sendo o cheiro de enxofre do diabo.
E o córrego? Fosse domingo, houvesse sol, estivesse o Antonio de boa vontade, íamos ao córrego. Como ter raiva daquele homem?, que nos colocava em fila, sentido!, marcar passos!, descansar!, levando a seguir o cortejo em direção ao riacho. Assim que saíamos, eu me sentia totalmente perdido. Era um mundo imenso, casinhas avulsas, capões, montanhas lá longe. O chão seco ganhava vida, chutávamos a terra, levantávamos poeira e os mais velhos, lá atrás, ralhavam.
Numa curva do caminho havia um painel gigantesco, o maravilhoso desenho de um homem tomando uma xícara de café. Vote em Brigadeiro, todos liam alto. Que homem?, que portento?, que rei seria aquele?, que conseguira fazer um retrato tão grande e colocá-lo na beira do caminho.
O córrego era pequeno, raso e estreito. Terminava numa espécie de bacia, funda e larga. Na parte rasa brincávamos os pequenos. Na funda, o inspetor e os maiores. Nós, pelados. Eles, de calção.
A alegria era contagiante. Gritos e risos, mergulhos, pulos. Certa vez, levamos uma bola de pano e ela, para espanto nosso, não afundou. Jogamos durante muito tempo até que ela subitamente desapareceu. Em vão, procuramos aflitos. Anos e anos depois do episódio foi que me ocorreu que, com certeza, a água foi penetrando aos poucos, até que ela ficasse mais pesada e foi ao fundo, sendo levada a seguir.
Há uma lembrança ligada ao córrego que muito me marcou. De igual intensidade, só consigo lembrar de outros dois fatos: a noite na casa de Dona Leca e aquele estranhíssimo episódio a que chamarei O Acontecimento. O detalhe do córrego parece mais forte que todos, uma misteriosa garça, muito nítida, mas confusa. É possível que tenha acontecido mais de uma vez. Mas no meio de tanta neblina, minha memória só retém uma cena.
Antonio me chamou e me perguntou se eu queria mergulhar com ele. Nunca tive medo de água. Ele se agachou e pediu para eu montar nas suas costas. Tinha que segurar no seu peito, se fosse no pescoço ele não ia conseguir respirar. Me segurei firme, envolvendo-o como se fosse um filhotinho de coala. Ele era enorme, parecia uma estátua. Mandou que eu respirasse fundo. Pronto? Um estalo e eu me senti envolvido por todo um universo frio. Ruídos estranhos, seria este o canto da Iara? Eu ia soltando o ar aos poucos, era confuso e extraordinário ali. Apertei os braços, ele me dava a segurança máxima e eu sabia que não podia me soltar. Finalmente os sons desapareceram, aqueles zumbidos e melodias do outro mundo. Ele nadou comigo até a outra margem. Eu era um carrapatinho maravilhado e, mais que a sensação de atravessar a parte funda do córrego, me enchia de prazer estar ali, abraçado a ele, com meu corpo todo colado às suas costas, o sexo apertadinho, sentindo por inteiro suas carnes rijas e molhadas.
Nem é preciso que o Sr. Freud explique.
garças e abutres chegados da terra do urubu-rei, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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Genial este capitulo. Li e reli, e aguardo ansioso o próximo.