O produtor Samuel Goldwyn nunca imaginou que do ameno céu de Los Angeles desabasse uma tempestade daquelas. Fizera o melhor, como a tanto o obrigava dinheiro e arte. Vira uma peça da escritora comunista Lillian Hellman e gostou. Curioso, a história do cinema americano é também a da ambígua paixão de produtores capitalistas por guionistas e realizadores comunistas. A peça chamava-se Little Foxes, uma fogueira alimentada a avareza e a corrupção.
Goldwyn produzia filmes havia trinta anos. Fundara o que seria a Paramount e é dele a inicial do meio da MGM. Mas em 1941, não havia ninguém mais independente do que Goldwyn. Estava sozinho e, de dia, apunhalando para não ser apunhalado, aguentava-se na selva competitiva de Hollywood. À noite, juntava-se a mortos e feridos para jogar poker e baccarat. E ganhava.
Comprou os direitos da peça, ciente de que precisava de uma coisa para a transformar num filme retumbante. Precisava de Bette Davis, cujos olhos, boca, tudo o mais, era douradíssima propriedade da Warner. O realizador seria William Wyler, que tivera com a actriz afinidades cuja electividade não vem ao caso, e dirigira os dois maiores êxitos dela. O diabo eram os irmãos Warner. Goldwyn nem queria ouvir o gritado e cuspido “não” que o esperava.
Deus tem esta coisa de gostar de competir com Shakespeare e armou-a bonita. O cunhado de Goldwyn, Jesse Lasky, estava a produzir para a Warner o patriótico Sergeant York. Fizera umas infames aldrabices a Goldwyn nos tempos da Paramount. Veio, com um arrependimento de melancia e a doçura de um par de figos, pedir-lhe emprestado Gary Cooper. Goldwyn fingiu torcer-se ao dizer que sim.
Lasky anunciou o triunfo à Warner. Os irmãos telefonaram muito gratos. “Obrigado Sam, não temos como agradecer… Ah, temos? Como, Sam?… Bette Davis! Son of a bitch, nunca.” Montada a armadilha, Goldwyn encostou a pistola à cabeça de Warner, lembrando-lhe uma dívida de 400 mil dólares ao poker. Trocou a dívida pelos esgazeados olhos de Bette.
Mas o que antes fora Deus com os anjos entre Bette e Wyler, foi aqui uma gritaria dos infernos. No filme, ela era a mulher que despreza e deixa morrer o marido sifilítico (disfarçado em problemas de coração, mas vão por mim, o que ele era, mesmo, é sifilítico), era a irmã que chantageia dois irmãos, era a mãe capaz de vender a filha. Wyler queria cambiantes, complexidade. Bette achava que devia ser só a cabra que a personagem era. Houve trovões, estridência e relâmpagos. A actriz desapareceu duas semanas. Goldwyn via o filme a afundar-se e o dinheiro a fugir-lhe. Disse ao ouvido de Wyler: “Deixa-a fazer como quer. Ela deve saber. Afinal, construiu a carreira a fazer cabras como esta!”
Little Foxes foi o estrondoso êxito que Goldwyn adivinhara e Bette a cabra que queria ser.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Little Foxes no Brasil teve o título de Pérfida.