Estou na cozinha da casa de Vera Brant, cercado, como é de hábito, por gente sensível, inteligente e criativa. Lá fora, na noite, o flamboyant impera. Tenho ao meu lado, no melhor lugar de todas as casas, o maestro Jobim e Gonzaguinha. Diante de quem tem o que dizer, e pensa com profundidade mesmo as coisas do cotidiano, prefiro falar pouco e ouvir.
A cerveja molha as gargantas e os bolinhos de feijão nos alimentam. A música, a poesia, as pessoas e o mundo eram nossos assuntos e o tempo parecia não existir.
Mas eu estou agora ouvindo uma seresta à frente de nossa casa, em Caldas, Minas Gerais, na véspera do dia em que meu pai, juiz da comarca, se despedia da cidade para assumir o mesmo cargo em Diamantina. As imagens são nubladas quando me lembro do ocorrido. Eu não tinha completado cinco anos de idade. Ficaram os sons da saudade dos que ficavam e da gratidão dos que partiam.
E agora eu estou, de calças curtas e mirando o presente, pisando nas pedras capistranas do Tijuco com minhas sandálias de sola de pneu, que nunca acabam. Vou comprar a revista O Cruzeiro para meus pais e aproveito e adquiro o primeiro exemplar brasileiro da Luluzinha e sua turma.
O Zé Aparecido me leva para jantar com ele no Palácio dos Buritis. Eu e o Hildebrando Pontes nos surpreendemos com a presença iluminada e bem humorada do Oscar Niemeyer. Foi uma alegria sem precedentes, dessas que só o Zé tinha capacidade e generosidade de oferecer aos amigos.
No bar Scotelaro, em Belo Horizonte, rompo a madrugada bebendo cerveja com Dedé, Caetano Veloso e minhas irmãs Vina e Ana. Ali mesmo eu iniciara, numa noite de novembro, a comemoração pelo nascimento de minha primeira filha e, mais tarde, da segunda.
Com paletó do Toninho Horta, calça preta minha e gravata borboleta de não sei quem, subo ao palco do Maracanãzinho entupido de gente para, a seu lado, assistir ao meu parceiro, Milton Bituca do Nascimento, cantar a nossa Travessia, que abria todos os horizontes para nós.
No meio de todo esse rodopio temporal e geográfico, a memória me leva e traz pelos caminhos de minha existência. Não me lembro como começou nem sei como se encerrará. Mas aprendi muito, disso eu tenho certeza. Quando olho para os que me cercam, a vontade que tenho é de gritar ao mundo que é com afeto, compreensão, carinho que seremos saudáveis parceiros na construção de um mundo mais justo.
A consciência de que podemos conviver em harmonia e a sede de beleza que só a amizade, o amor e a cultura podem nos ofertar me embala a fazer rodar o pião que vai encantar as crianças do mundo.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em dezembro de 2012.
Para conviver em harmonia.
Basta um flamboyante, a voz do xara e a poesia de Brant.