Não é que acredite na reincarnação, mas Louise Brooks ainda não tinha morrido e já era Jean Seberg. Nem se pode bem dizer que tenha reincarnado em vida. Há uns bons 20 anos que a Lulu, que Brooks fora em A Boceta de Pandora de Pabst, já não oferecia o corpo ao cinema quando Jean Seberg se estreou em Saint Joan, pronta para o sacrifício às rudes mãos de Otto Preminger.
Franja em Lulu, andrógina nuca rapada na Seberg, não são só os cabelos curtos que as tornam gémeas. Partilham também, como irmãs, uma sexualidade conturbada.
A marinheira virilidade com que um ajoelhado Victor McLagen, em A Girl in Every Port, lhe descalça o sapato da estendida perna nua, anuncia que Louise Brooks, nascida no Kansas, veio ao mundo para fazer estragos.
O incestuoso estremecimento de um Verão na Riviera, a que Jean Seberg dá corpo e alma em Bonjour Tristesse, a incontrolável vaga de desejo que em Lilith lhe afoga a boca e o corpo, continuam e prolongam nesses filmes de Jean Seberg, o que Brooks experimentara nos últimos anos do cinema mudo. Brooks celebrou os êxtases da carne nos antros de Berlim; Seberg viveu tormentos juvenis na Côte d’ Azur e a clausura numa mansão psiquiátrica de Maryland: por ambas passa um igual rumor, surdo e violento, que nos faz pensar nelas como um só e mesmo corpo.
Brooks e Seberg são também irmãs na rebeldia. Podem não saber porque se revoltaram, mas ambas acabaram fora de Hollywood, procurando na Europa – Brooks na Alemanha, com Pabst, Seberg em França, com Godard – a imagem que os estúdios americanos pareciam não ser capazes de lhes dar.
Por ter sido a Lulu de Pandora com uma audácia que Wedekind, o autor da peça original, não imaginou nos melhores sonhos, a Brooks bastou-lhe a sexualidade. Jean Seberg, que a traços de esmagada adolescência reinventou a Cécile de Colette em Bonjour Tristesse, juntou a tragédia política ao escândalo sexual de Brooks, sua primeira incarnação. A jovem americana do Iowa radicalizou-se e apoiou os Black Panther, acabando acossada pelo FBI.
Há entre a Lulu de Brooks e a Cécile de Seberg uma linha de coincidência e continuidade que se percebe melhor se nos borrifarmos para a cronologia: na verdade Cécile começa o que Lulu acaba. Em ambas se enterrou a pequenina semente da auto-destruição. E não foi só nas personagens. Também na vida, Brooks e Seberg, duas provincianas americanas, sempre souberam que desenhar num só gesto o escândalo do mito vale mais do que a burocrática glória de uma longa carreira. Fizeram poucos filmes. Feitos os filmes, Brooks escondeu-se em Rochester como quem se fecha num jazigo e Seberg enfiou uns frascos de barbitúricos, deixando-se morrer no banco de trás de um Renault, no remanso de uma rua de Paris. Eram uma e a mesma mulher.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.