Vivemos tempos de Bosch. Entra-se num comboio, num avião e os gemidos vêm das próprias cadeiras. As ruas gritam, os restaurantes sussurram. A realidade está a hiperventilar.
Um amigo meu foi a Bruxelas. Ou pode ter sido a Cannes, ao G-20. Cheirava bem, a maçãs, a flores secas, mas de repente levantou os olhos e viu-se num tempo de Bosch. Era “Cristo Carregando a Cruz”, o quadro em que mais hediondos são os rostos humanos. De tal maneira que o Filho do Homem caminha de olhos fechados. A multidão que o esmaga é uma orgia de crueldade, bocas torcidas, narizes inflados pela soberba, caras suinamente crispadas pela avareza. Cheirava a maçãs, disse o meu amigo, e o egoísmo era brutal.
O pintor flamengo viveu o estertor de um mundo. A prodigiosa arquitectura teocrática – de inferno e paraíso, pecado, culpa e morte – estava a dar as últimas. Talvez não se visse, mas o mistério instilava-se na Natureza e roçava-se pela carne. Bosch não pintava com as mãos e ainda menos o que os olhos lhe davam a ver. Bosch pintava com a mente. Pintava o caos e a irracionalidade: um cavaleiro a nascer do rabo de uma sereia, uma mulher pútrida com casca de árvore segurando nos dedos-raízes uma enfaixada criança. Pintou nas “Tentações” um músico com cabeça de porco, exemplo do bizarro bestiário em que fundiu homem, bicho e vegetal.
Vejo um auto-retrato de Bosch e começo a ter alguma confiança na reincarnação: poderia ser o pai, o avô de David Lynch. A Idade Média era propícia a mistérios. Pois é. David Lynch é o único cineasta medieval de que há memória: é ainda teológico e escolástico. Bosch era brumoso. David Lynch, para começar, estreou-se com a névoa industrial de Eraserhead. Mesmo em Mullholand Drive pinta a Califórnia com as oníricas brumas dos recorrentes pesadelos dele e de Naomi Watts.
Faço questão de não usar a palavra surreal. Vivemos um tempo de Bosch e Lynch anda já a filmá-lo há alguns anos. Uma ninhada de cachorros mama sofregamente a cadela sua mãe na sala de estar da namorada do rapaz de Eraserhead, mais depressa se faria uma festinha a Angela Merkel do que às repugnantes costas do herói proboscídeo de Elephant Man e há, em Blue Velvet, uma ominosa orelha humana com que os insectos se deliciam no relvado de uma small town americana.
Não se chame fantasia ao que é a livre expressão de uma violenta irracionalidade. Veja-se Blue Velvet. Primeiro a nudez masoquista, depois os dois mortos (orelhas cortadas, trapo de veludo a sair-lhes da boca) na sala da escravizada Isabela Rossellini, oferecem, como as “Tentações de Santo António” ou os “Sete Pecados Capitais”, um mundo hipersexualizado, mais grávido de maldade do que mãe de Hitler. Pássaros estranhos poisam-nos na janela com apavorados insectos no bico: vivemos um tempo de Lynch.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
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Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.