O mais sonâmbulo dos filmes

Um dia, por falta de com­pa­rên­cia do mundo tal como o conhe­cia, vi, como na estreia de um filme, reinaugurar-se a vida.

Antes, havia um mundo colo­nial, 30 graus a pedir ven­toi­nha ou cal­ção de banho, um por­tu­guês muito bem mal falado, um mundo a chei­rar a aqua velva, len­çóis de catinga e ter­ra­ços de man­gas, musi­cado a meren­gue e led zep­pe­lin, ras­gado a kawa­sa­kis, gri­tos de qui­tan­dei­ras, uma ino­cente liamba

Mundo, como todos os mun­dos, de ver­da­des e men­ti­ras, mas um mundo regu­lar que come­çava às cinco da manhã e chei­rava a eter­ni­dade. Era tal­vez uma terça-feira, umas per­ple­xas três da tarde, e esse mundo abriu o pipo e esvaziou-se.

Em meia-hora desa­pa­re­ceu um século. Num minuto a mesma huma­ni­dade era outra. Como em Citi­zen Kane e já lá vou. Por mais que a trai­dora memó­ria me insi­nu­asse que já hou­vera pas­sado, os olhos, o nariz, a boca só viam, chei­ra­vam e sabo­re­a­vam o cama­rada mundo novo de “efec­ti­va­mente a revo­lu­ção” e enga­ja­mento popu­lar. Era tudo novo na vida do novo mundo que come­çava, como era tudo novo no novo cinema que Orson Wel­les estreou em Citi­zen Kane.

Era tudo uma “cri­ada inven­ção” em cada plano de Citi­zen Kane, nos pica­dos e contra-picados, na nar­ra­tiva que mil nar­ra­do­res vêm brus­ca­mente des­pen­tear. Há fil­mes, como o meu minuto das três da tarde de uma terça-feira, em que o cinema renasce como se nunca tivesse exis­tido antes, mais fresco do que o mais fresco dry-martini. E, revo­lu­ção por revo­lu­ção, devia era estar a falar de A Bout de Souf­fle, a estreia em que Godard mani­pu­lou o corpo e a cara de Jean Seberg e de Jean-Paul Bel­mondo, só para melhor cor­rer pelos Champ-Elysées de câmara à mão e os obri­gar a dizer os mais ines­pe­ra­dos, impro­vi­sa­dos diá­lo­gos. Era a boca do cinema encos­tada à boca do novo, como se antes não tivesse havido Grif­fith, Eisens­tein ou Ford.

Li que, há dias, uma tai­lan­desa de 22 anos sonha­do­res, de tão infe­liz com infe­liz plás­tica aos lábios e nariz, se enfor­cou na espe­rança de que, ao rein­car­nar, no limpo reco­meço os deu­ses lhe con­ce­des­sem a graça de uma nova linda boca, a per­fei­ção nasal. Tam­bém uma grande guerra enfor­cara a Europa e do cinema só sobrava a ruína de um monte de pedras, esque­ci­das e pesa­das câma­ras em estú­dios inú­teis, quando Roberto Ros­sel­lini fil­mou Roma Cidade Aberta: da rua fez liber­dade e luz e com a sin­ce­ri­dade de uma mulher apa­gou do léxico a pala­vra actriz. Uma grande guerra enfor­cara o cinema: Ros­sel­lini reinventava-o numa cidade de feri­das aber­tas, em Anna Mag­nani, genial e imper­fei­tís­sima mulher.

Hoje, está em curso outra surda, cala­fe­tada grande guerra. Anun­cia um mundo novo, de cida­des expres­si­o­nis­tas, edi­fí­cios tor­tu­ra­dos e som­brios. Lembrem-se: o que a vida nos vai rou­bar, já o cinema nos deu em Cali­gari, o mais sonâm­bulo dos filmes.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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