Árvores do Sul criam estranho fruto / Sangue nas folhas / Sangue na raiz / Corpos pretos balançando na brisa do Sul.
Está sendo lançado agora no Brasil o livro que conta a história da canção que abre com esses versos. Chama-se Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção (Cosac Naïf, 144 páginas, R$ 39,90).
“Strange Fruit” foi a primeira canção contra a racismo da História.
Me deu vontade de fazer esta anotação por dois motivos fortes. Em primeiro lugar, é claro, pela canção em si, e pelo lançamento do livro, que ainda não li, mas pretendo ler o mais rápido possível
Em segundo lugar, pela minha ignorância. Nunca tinha ouvido falar em “Strange fruit”. Só fiquei sabendo da existência da música com as matérias dos jornais sobre o lançamento do livro.
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A canção foi composta no final dos anos 1930 por Abel Meeropol (1903-1983), um judeu esquerdista nova-iorquino que compunha sob o pseudônimo de Lewis Allan. Ele escreveu primeiro a letra, que chegou a ser publicada como poema na revista marxista The New Masses, e só depois compôs a melodia.
Os versos foram inspirados por uma fotografia do linchamento de dois negros em Indiana, em 1930, cujos corpos foram pendurados em uma árvore. Estranhos frutos.
Meeropol levou a música para Billie Holiday em 1938. A cantora tinha então 23 anos, e se apresentava no Café Society, um bar-clube de jazz no Greenwhich Village de Nova York. Durante meses ela encerrou suas apresentações cantando “Strange Fruit” no Café Society.
Billie Holiday faria quatro gravações da canção; a primeira foi em 1939, num 78 rotações lançado pelo selo Commodore. Mais tarde faria mais uma gravação para esse mesmo selo, e duas outras para a Verve.
Na sua autobiografia Lady Sings the Blues, escrita em colaboração com William Duffy e publicada em 1956, três anos antes de sua morte, a grande dama do jazz e do blues afirma que ela própria, Sonny White e Meeropol foram os co-autores da canção.
Esse é um dos mitos que se construíram sobre “Strange Fruit”, e que o livro lançado agora no Brasil desmente. A autoria dessa beleza chocante é apenas de Abel Meeropol.
O autor do livro é um jornalista chamado David Margolick. Em 1998 – 60 anos após a música ter sido composta -, ele fez uma reportagem sobre “Strange Fruit”, que foi publicada na elegante revista Vanity Fair. Margolick continuou pesquisando sobre a história da canção, entrevistando outras pessoas, e, dois anos depois, em 2000, lançou o livro, cujo título original é Strange Fruit: Billie Holiday, Café Society, and an Early Cry for Civil Rights.
O livro fala sobre o racismo e os linchamentos de negro nos Estados sulistas que inspiraram Meeropol a compor a música. Entre 1889 e 1940, mais de 2.700 negros foram linchados no Sul dos Estados Unidos.
– “Strange fruit’ foi escrita numa época em que as relações raciais nos Estados Unidos eram muito precárias”, disse o autor do livro, segundo reportagem de Luiz Felipe Reis no Globo. “Os linchamentos, apesar de terem diminuído, não eram discutidos. Por isso, cantar aquela música foi um ato de coragem. (…) Os negros não queriam ouvir uma música sobre aquilo, assim como a maioria dos brancos.
A própria Billie Holiday diria, em entrevista à revista especializada em jazz Downbeat, em 1947: “Cantar aquilo não me ajudou em nada. Fiz uma porção de inimigos”.
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Eis a letra de “Strange fruit”:
Southern trees bear strange fruit
Blood on the leaves
Blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees
Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
The scent of magnolia sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh
Here is a fruit for the crows to pluck
for the rain to gather
for the wind to suck
for the sun to rot
for the tree to drop
Here is a strange and bitter crop
E, aqui, uma tradução literária, feita pelo letrista e poeta Carlos Rennó, creio que para a edição brasileira do livro:
Árvores do Sul dão uma fruta estranha
Folha ou raiz em sangue se banha
Corpo negro balançando, lento
Fruta pendendo de um galho ao vento
Cena pastoril do Sul celebrado
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa
Eis uma fruta para que o vento sugue,
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis uma estranha e amarga fruta.
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Deve de fato ter sido um choque ouvir essa música em 1939. Ainda é um choque ouvi-la hoje, mas na época, então, seguramente deve ter sido algo absolutamente inimaginável.
Não tinha nada a ver com o resto do repertório de Billie Holiday, belíssimas canções sobre amor e dor.
Não era jazz. Não era folk – não era nada parecido com alguma coisa já conhecida.
Diz João Marcos Coelho, na reportagem publicada no Estadão sobre o lançamento do livro:
“Só voz e piano, ‘Strange Fruit’ escapa, como diz Margolick, ‘a qualquer categorização musical fácil (…) é artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz’ (pág. 25). Na página 79, o escritor Stud Terkel aponta uma inesperada, mas adequadíssima, afinidade entre ‘Strange Fruit’ e ‘Der Leiermann’, ou ‘O Homem do Realejo’, a desolada canção final do ciclo Der Winterreise, Viagem de Inverno, obra-prima de Franz Schubert, em que o protagonista está face a face com a morte.”
Face a face com a morte. Quando comecei a ouvir diversas vezes “Strange fruit’ agora, depois de ler as matérias nos jornais, me lembrei de “Dirge”, uma das canções mais dolorosas de Bob Dylan, do disco Planet Waves, de 1974. Dirge é a palavra inglesa para designar música fúnebre, música lenta e triste para ser cantada em funeral, em cerimônia de adeus.
De uma certa maneira, “Strange fruit” é uma dirge. Uma coisa absolutamente dilacerada.
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Depois de Billie Holiday, muita gente gravou “Strange fruit”, é claro. João Marcos Coelho cita Carmen McRae, Diana Ross (que interpretou Billie Holiday no filme baseado na autobiografia da musa, Lady Sings the Blues, de 1972, no Brasil O Ocaso de uma Estrela), Abby Lincoln e até Sting e Tori Amos. E mais, como não poderia deixar de ser, Nina Simone, uma ativista da negritude, eterna denunciadora dos crimes do racismo.
Muitas dessas gravações estão, é claro, disponíveis no YouTube. Há vários posts com as interpretações de Billie Holiday, ilustradas com fotos da cantora e às vezes de linchamentos. Há também um filme – aparentemente bem raro – em que Billie Holiday aparece de fato cantando a música,
Uma lição de humildade
É isso aí. O que eu precisava escrever sobre “Strange fruit” está aí.
O que vai abaixo é só um comentário sobre a minha ignorância.
Eu achava que conhecia pelo menos um pouco de música popular americana. Achava que conhecia pelo menos um pouco da luta contra o racismo nos Estados Unidos.
O fato de nunca ter ouvido falar nessa música que é um gigantesco marco histórico me deixou chocado com a minha própria ignorância.
E há ainda um agravante. Eu tenho em casa duas gravações da música, com Billy Holiday: uma que saiu no LP brasileiro Gallant Lady, com gravações de 1951, e outra, de 1956, que saiu no LP The Billie Holiday Songbook, os dois da Verve. Estavam nos meus LPs, que passei para CDs; portanto, já tinha ouvido a música, mas não prestei atenção, não captei o sentido da letra. Me passou.
Ignorância. Ignorância com agravante.
O choque com a própria ignorância, no entanto, não deixa de ter um lado bom.
É uma lição de humildade – e lições de humildade são fundamentais, do 0 aos 62 ou mais anos.
Sem humildade não se avança nada.
“Strange fruit”, e tudo o que ela significa, servem para me apontar como são verdadeiras algumas lições que afinal pude aprender na vida.
A lembrar.
Por puro acaso, uma vez vi na TV, num documentário, um diálogo entre Lilian Gish e Jeanne Moreau. Lillian Gish é 35 anos mais velha que Jeanne Moreau. Já madura, La Moreau perguntou à grande estrela dos primórdios do cinema: “Que presente você daria a um filho?” E a atriz de alguns dos primeiros grandes filmes que foram feitos, como O Nascimento de uma Nação, de 1915, deu a resposta esplendorosa, tão absolutamente marcante que não seria capaz de me esquecer dela mesmo após o ataque do Alemão;
– “A curiosidade. Quem tem curiosidade jamais se entedia.”
A lembrar outra das lições.
No primeiro ano do Clássico, no Colégio de Aplicação, em Belo Horizonte (chamava-se assim naquela época o que hoje é o Ensino Médio, o que vem após os oito primeiros anos), o professor de Filosofia passou boa parte de uma aula nos explicando que apenas com o estudo, o conhecimento, é possível que pessoas mais pobres possam ter uma vida melhor, e dar vida melhor aos filhos.
A lição era clara como água da fonte, e jamais me esqueci dela. O engraçado é que as mesmas palavras que ouvi soaram diferentes para um colega e amigo, o Cuca, que vinha de família com muitíssimo mais dinheiro que a minha. Eu era classe média baixa, ele era classe média para alta. Depois da aula, e por muito tempo, Cuca, um socialista radical utópico, dizia que o professor tinha sido brilhante ao explicar que o estudo não mexe com a distinção de classe social – só a Revolução poderia destruir o abismo entre as classes.
Também nos tempos do Aplicação aprendi com Vivina, a professora que virou amiga para todo o sempre, que as pessoas, quando são muito jovens, admiram a beleza; depois, quando crescem um pouco, aprendem a admirar a inteligência; e só depois, quando ficam maduras, percebem que o verdadeiro valor é a bondade, a generosidade. A capacidade de ser solidário.
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Para mim parecem muitas claras, nítidas, as relações entre esses axiomas aí e o fato de eu só ter ficado sabendo da existência de “Strange Fruit” quando os jornais fizeram matérias sobre o lançamento da edição brasileira do livro de David Margolick, a biografia da canção.
Ninguém é obrigado a saber de tudo. De forma alguma. Até porque há informação demais, e a quantidade de informação acumulada no planeta cresce de maneira exponencial, multiplica-se por 2 a cada ano, algo assim.
Mas, por outro lado (embora a expressão “por outro lado” seja bastante questionável, para dizer o mínimo), está tudo aí para ser descoberto, conhecido, sabido.
“A informação virou commodity” – ouvi essa frase algumas centenas, milhares de vezes. E ela é verdadeira.
A informação está à disposição de quem quiser. Quase grátis.
Quando, quase 4 décadas atrás, resolvi comprar uma Britannica, ela custava quase o preço de um Fusca. Nunca aprendi a dirigir, nem Fusca nem carro algum, mas sempre soube como trafegar pela Britannica.
Quase tudo o que a Britannica contém está hoje grátis na internet.
Claro: para tentar compreender tanta informação, tanto dado, é preciso ter passado por um currículo bom, um ensino estruturado.
Evidentemente, para ter sucesso numa carreira, num trabalho, numa profissão, é preciso juntar um ensino estruturado, uma imensa curiosidade, e seriedade no estudo.
Mas o fato é que sempre há muito para se aprender – mesmo nos temas que a gente acha que domina razoavelmente.
Aprender é bom. É uma das melhores coisas da vida. Pode ser um sentido para ela.
Agosto de 2012
Cacete que texto bom. Aprendi e me deliciei. A informação é um “estranho fruto”. Tem razão a professora Vivina, na velhice a capacidade de ser solidário é vertente. Me solidarizo com a ignorância humilde e repassarei mais este conhecimento aos meus. Obrigado!
De todas as gravações, especial a de Nina Simone que soa muito mais “dirge”,dilacerada e denunciadora dos crimes do racismo.
Grande Miltinho!
Obrigado pelas mensagens. Gosto de todos os seus comentários – inclusive os eternos paus nas compilações!
Um abração do amigo
Sérgio
Ah, sim: a Nina Simone é demais.
Na minha opinião, é a maior cantora de todas, de todos os tempos, de todos os lugares.
Sérgio
Sérgio,
juro que não me lembro de ter te falado essas coisas, mas agora, que tô velha, concordo com todas elas… Será que eu era precoce? Ou era feliz e não sabia, “tipo” Ataulfo?
Seja o que for, foi um tempo sensacional, e sempre achei maravilhoso ter conhecido vocês, você.
Ah, adorei o texto, e a música é linda.
Beijo solidário, então.
Vivina
Eu também ignorava a existência dessa música até ter lido o livro (e ignorava esse texto também, às vezes alguns me escapam, devido à alta “rotatividade” do site. O 50ADF é mais tranquilo de acompanhar). Como você mesmo disse: é muita informação, difícil dar conta de tudo.
Você conseguiu resumir bem o livro, mas gostei mesmo foi do seu comentário. E adorei os axiomas da sua amiga.
Concordo que aprender é bom, é uma das coisas que a gente leva daqui.
Abraços.
Que presente! Gostaria de agradecer.
Olá, gostei muito do seu texto. Pra ampliar ainda mais sua curiosidade, deixo link com a versão do Siouxie and Banshees, uma das que mais gosto.
https://youtu.be/7VPlqblP3uE