O monstro gentil foi uma fraqueza, um interlúdio lírico. O monstro, para ser monstro, é besta, ectoplásmico, garras e lâminas. O monstro é feio, o monstro é mau.
Não falo das criaturas que qualquer Frankenstein pode criar. Falo do monstro que vem desse lado que é o “outro lado”. Do Nosferatuque corre a cortina da morte e pelo pescoço envenena as nossas mais doces virgens. Falo de monstros da exótica selva, como King Kong, tão gigantescos que uma só mão é a viciosa cama onde deitam a bela, tão bela, Fay Wray.
Nos anos 50, do espaço, o cinema americano viu chegar outro monstro. Houve guerras dos mundos, extra-terrestres de planeta incerto. Havia dias em que a terra parava, quietinha de medo. “Watch the skies” era o lema desse cinema.
Ficção científica? Talvez. Mas nas décadas atómicas de 50 a 70, os olhos americanos, quando se levantavam para o céu, era para anteverem a ameaça, a nuvem vermelha. Sub-consciente, não-dito ou mal dito, o visitante galáctico era primo dos comunistas russos. O império alien viajava com os traços massificados do império soviético.
Quando Spielberg filmou E.T., o primeiro ser viscoso que o designer lhe trouxe era filho dessa tradição. Era mau e assustador. Mas os anos 80 começavam a esquecer o medo atómico. Anunciava-se um céu desanuviado que a chegada de Gorbachev, de mancha alien na testa, viria confirmar.
Há um murro na mesa exposto no museu da Amblin, por ter sido o único murro que Spielberg deu, o murro que recusou o protótipo assustador de E.T. Spielberg telefonou a Rambaldi e o italiano desenhou o que ele queria, o “E.T. phone home” que sabemos. Bizarro mas gentil, o filho que até uma mãe desnaturada é capaz de amar: 90 centímetros de corpo, cabeça para que não há chapéu, um pescoço periscópico. E, sobretudo, olhos húmidos de bondade, a cara pintada com a excentricidade de Einstein e a bonomia de Hemingway. Com Spielberg, nos anos 80, começaram a descer anjos do céu. Do “outro lado” surgiam finalmente seres que não nos queriam matar, nem violar as nossas inúteis virgens.
Desanuviámos por pouco tempo. Estreou-se Prometheus. Nele e com ele, Ridley Scott nem espera que o monstro venha visitar-nos. Solitários, órfãos, os humanos invadem as galáxias. São Vascos da Gama, mas não buscam uma marciana ou venusiana Índia. Buscam, perdoem o neologismo, a incepção, o momento em que jorrámos da luz. Em Prometheus, os humanos encontram esse ser primordial. Não sei o que a ele ou a nós mesmos fizemos. Sei apenas que o alien só quer massacrar-nos. Quer rasgar-nos a carne sem piedade e sem remorsos, erradicar-nos da terra, céu e inferno.
O que roubámos – ao cosmos? aos deuses? – que nos torna tão odiosos ao coração do universo? O fígado do futuro tem de ser de pedra para resistir a tanto ódio.
O semanário português O Expresso publica os artigos do autor.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.