O Brasil olímpico já foi pior

Havia uma multidão no cais do porto do Rio de Janeiro, a capital do País. Era manhã de 26 de junho de 1932. O vapor Itaquicé zarparia para Los Angeles, levando nossos atletas à disputa da 10ª Olimpíada.

Estavam no cais os 82 atletas, os 70 músicos da banda dos fuzileiros navais, a Rainha da Delegação, uma atriz de cinema (Sônia Veiga), o representante do presidente Getúlio Vargas, turistas, tripulação. Somavam 478 pessoas. Todas embarcaram.

Nos porões iam 60 mil sacas de café doadas pelo governo, para serem vendidas pelo caminho, e custear as despesas dos atletas. Seguia também bom estoque de garrafas de pinga, destinadas a fazer sucesso nos Estados Unidos sob a lei seca. Na proa, a frente da embarcação, despontavam dois pequenos canhões; na popa, outros dois.

A viagem fora transformada também em um cruzeiro turístico. Mais da metade entre os 375 passageiros, atendidos por 103 tripulantes, estava a passeio. A banda ia para desfilar à frente dos atletas, na Vila Olímpica. Mas como isso era proibido – descobriu-se depois – nem chegaria a desembarcar. O fraque e a cartola levados pelo representante do governo, para cerimônia de abertura, ficaram a bordo pela mesma razão.
Os primeiros dias da viagem transcorreram sem incidentes. Apenas foi suprimida a escala em Recife para impedir que uma parte dos taifeiros, revoltados com o excesso de serviço, desembarcasse.

O Itaquicé era um dos históricos Ita (Itaberá, Itaité, Itapagé), que costeavam o litoral brasileiro trazendo mercadorias e migrantes do Norte. O governo fretou o vapor à companhia Costeira, dona da frota. E instalou os canhões.

A viagem demoraria um mês. Perto do Canal do Panamá, os viajantes souberam que alguma coisa grave estava acontecendo no Brasil. Só mais tarde foi possível confirmar que os paulistas haviam se levantado em armas contra o governo de Getúlio Vargas. Estourara a Revolução Constitucionalista de 1932. Alguns pensaram em voltar, lutar. Mas não era possível.

Na Arca de Noé, assim chamada pelo capitão do Exército Orlando Silva, que comandava os atletas, não havia espaço para treinos. Mal dava para exercícios físicos e curtas corridas. Havia uma piscina, mas de lona, rasa. Assim, o lançador de discos surrupiava pratos da cozinha e os lançava ao mar. Um integrante da equipe de tiro abateu um tubarão, durante um treino.

Às portas do Canal do Panamá, os quatro pequenos canhões cumpriram seu papel. O navio de cabotagem foi apresentado como embarcação de guerra – que não pagava taxas. Funcionários panamenhos subiram a bordo e se viram diante de um exército em trajes civis. Desceram ao porão e descobriram o café.

O Itaquicé ficou retido em Balboa, no meio da travessia do Panamá. Depois de três dias chegou o dinheiro, mandado pelo Banco do Brasil. Em 22 de julho, o navio ancorou no porto de São Pedro, a dezoito quilômetros de Los Angeles. Novo impasse. Não havia dinheiro para manter todos os atletas na Vila Olímpica.

Feita uma seleção, 24 ficaram a bordo. Os outros 58 desembarcaram, 13 deles por conta própria. O navio foi depois para San Francisco. Aqui, aconteceu um fato singular. O jornalista Marino Tolentino, que estava a bordo, mandou um despacho para o Diário da Noite, de São Paulo. “O Itaquicé foi penhorado por não terem sido pagas as taxas portuárias, permanecendo nele um oficial da polícia americana.”

Um outro jornalista presente, Pandiá Pires, detalharia em seu livro Memórias de um Navio Fantasma: “O navio de guerra, com canhão e tudo, bandeiras e hino, foi penhorado. E fez-se a ocupação do navio, no momento considerado território nacional. Debaixo do pavilhão brasileiro (…) as autoridades americanas colocaram editais, interditando o vaso heróico”.

Na véspera de ir a leilão, o débito foi saldado. A venda da pinga, no entanto, não teve consequências. Marino Tolentino escreveu sobre ela. “Uma verdadeira romaria visitava diariamente o navio (…). Vendia-se no bar, nos corredores e no camarote do comissário (…). Vários tipos de catadura horrível entravam no navio acompanhados de mulheres, a fim de que as mesmas transportassem as garrafas sob as vestes.”

Pandiá Pires registra que tudo foi vendido. “Quando a polícia de Los Angeles quis agir, já não havia mais estoque. Nem provas.” Sobre furtos de talheres e toalhas: “A pedra do navio anunciava, a giz, os assaltos, e a polícia de bordo confessava a impotência diante dos meliantes que desprestigiavam aquele grande vulto local, Al Capone.” (Na foto, a cerimônia de abertura dos Jogos de 1932.)

Vender o café era difícil, naqueles anos da Grande Depressão, que seguiu-se à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Mas alguma coisa foi negociada, registram depoimentos. E isso amenizou um pouco a situação. Os atletas receberam ajuda de custo de alguns dólares.

Apesar de tudo, a participação dos brasileiros nos jogos foi impecável. Todos os atletas ganharam a medalha de participação, de bronze. O paulista Lúcio de Castro foi o único a se classificar: sexto lugar no salto de vara. Lúcio enfrentou problemas. Os pregos de seu sapato afundavam, na moderna pista de Los Angeles. Acabou saltando descalço.

Mas quem causou sensação foi o marinheiro brasileiro Alberto Cardoso, corredor dos dez mil metros. Na véspera, ele estava no navio, em San Francisco – longe da raia olímpica. O comandante do navio alugou um carro velho, com dois amigos, e Alberto veio foi junto. A viagem teve muito problema, demorou a noite toda e parte do dia seguinte.

Alberto chegou em cima da hora. Mal alinhou-se, a corrida começou. Quando o vencedor cruzou a chegada, o brasileiro ainda tinha duas voltas pela frente. Sozinho na pista, continuou correndo. O público que lotava o estádio entrou em delírio. Aplaudia vigorosamente. No dia seguinte, o espírito esportivo do marinheiro brasileiro era elogiado em todos os jornais.

O ator brasileiro Raul Roulien levou alguns atletas para conhecer Hollywood. Lúcio de Castro, nosso saltador, foi convidado a participar de um filme, mas recusou. Como esportista, tinha mais o que fazer. Dedicou-se à sua carreira, que lhe daria diversos títulos em competições internacionais.

A nadadora Maria Lenk, quase uma menina, única mulher na delegação, decepcionou-se com Hollywood. Achou os cenários pequenos, pouco grandiosos diante do que via no cinema. O que a impressionou verdadeiramente foi um homem “gigantesco” que viu na beira da piscina, na Vila Olímpica, certa manhã. “Suas mãos pareciam remos”, contaria depois.

Perguntou, e alguém lhe disse: “É o Tarzan”. Johnny Weissmuller, recordista mundial de nado durante dez anos, já não competia mais.

Esta reportagem foi originalmente publicada no Diário do Comércio, em 10/8/2012.

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