Dias atrás, decidi me desfazer da belíssima coleção Os Pensadores, que a Abril Cultural lançou nos anos 70.
E aí, na hora, me lembrei do Fabio De Domenico, da Lia e de Cícero Bottino. Especialmente de Cícero Bottino.
Cícero, como eu, comprou religiosamente todos os volumes da coleção. A cada quinzena, um novo volume nas bancas – e Cícero e eu comprávamos, sem perder um. Era 1973, éramos jovens demais, e, como todos os jovens, tínhamos grandes esperanças na vida – inclusive a de algum dia ler os filósofos todos.
Ele foi meu colega na ECA, e também no Jornal da Tarde. Não chegamos a ser amigos muito íntimos, mas houve uma época em que fomos bem chegados. Eu namorava a Suely e ele namorava a Selma, e casamos com nossas namoradas mais ou menos na mesma época. Fomos a um ou outro show juntos, os quatro, eles jantaram na nossa casa, nós na deles.
Por uma dessas coisas absolutamente inexplicáveis, guardei na memória que de vez em quando o Cícero brincava com uma frase tipo: “Mas será que a gente algum dia vai mesmo ler tudo isso?”
Cícero foi o primeiro amigo que perdi. Teve câncer, cedíssimo, garoto, jovem demais. Uma vez em que fui visitá-lo, ele já doente, brincou comigo: “É, acho que não vou ler mesmo aquilo tudo”.
***
Sobrevivi três décadas e tanto mais que Cícero. Arrastei a coleção por umas três mudanças de apartamento, três casamentos, e não li sequer um dos livros da bela, bem cuidadíssima, bem editada coleção dos Pensadores. Folheei, observei, fucei, mas ler que é bom, não li nada. Acho até que Fernanda usou uma ou outra coisa no curso de Direito, mas eu, nada.
Às minhas edições de capa dura vieram se somar alguns volumes da segunda edição, lançada uns cinco anos após a primeira, e que Mary comprou, provavelmente durante seu curso de Filosofia na Fafich da UFMG.
Muitos anos atrás, não me lembro quantos, resolvi dar uma peneirada naquilo. Mantive os volumes dos muitos autores mais importantes, segundo meus grosseiros, rudimentares conhecimentos, e consegui botar fora alguns poucos livros que, tinha certeza absoluta, jamais iria ler mesmo. Vejo agora que a coleção completa tinha 37 volumes, e portanto me desfiz de 15, naquela época.
Mas a coisa de espaço na casa da gente é uma dureza.
“A rama não é de elástico”, a gente brincava no Jornal da Tarde quando um repórter queria escrever demais – e os repórteres sempre querem escrever demais. Como a rama (o que seria mesmo, no jargão da tipografia, a rama?), a casa da gente não é de elástico.
(Rama, segundo o Aurélio: “Caixilho retangular de metal onde se enquadra a fôrma tipográfica para deitá-la na prensa.”)
E os livros vêm chegando – os livros, as revistas, os discos, os DVDs. Tenho nove paredes tomadas quase inteiras por estantes, e já faz mais de dois anos que elas não comportam a quantidade de coisas. Os livros, discos e DVDs se amontoam fora dos lugares corretos, e isso me deixa de saco profundamente cheio – tenho horror a coisas desarrumadas, fora de ordem, fora do lugar.
Tenho uma certa inveja de Vivina, que tem um apartamento de três quartos só para guardar livros e trabalhar ali, em meio aos livros. Bem que eu gostaria.
Como não tenho, e a rama não é de elástico, há muitos meses planejo dar uma geral em tudo, botar fora o não fundamental, para que as coisas caibam nas estantes. De vez em quando consigo jogar fora um ou outro livro, alguns papéis.
Hum… Acho que a frase anterior é um pouco injusta para comigo mesmo. Nos últimos anos, tenho, sim, conseguido me desfazer de coisas. Me lembro de uma vez em que botei tanta coisa fora que até me sentei em cima da papelada volumosa depositada no hall dos elevadores e pedi a Mary para fazer a foto histórica.
***
Mas enfim: estou agora num momento de tentativa de abrir espaços nas estantes. E é aqui que entram o Fabio De Domenico e a Lia.
São antípodas, os dois.
Lia é minha vizinha do lado. Mudou-se para o apartamento ao lado do meu há alguns meses, depois de fazer uma imensa reforma nele. Uma das mudanças que fez foi botar abaixo a parede que separa a sala do quarto contíguo a ela, o lugar que, aqui em casa, é o nosso escritório.
Um dia nos encontramos no hall, nos apresentamos, e ela, extremamente simpática, quis mostrar para mim seu apartamento, cuja reforma estava nos finalmentes. A sala, que originalmente é um cinemascope, um troço comprido e fino, depois da reforma dela virou um espaço amplo, em um grande L, uma maravilha.
Ah, eu disse, ficou maravilhoso. Mas você quer saber? Nós pensamos em fazer isso.
E pensamos mesmo. Muito tempo atrás, pensamos exatamente na possibilidade de derrubar o pedaço da parede da sala que a separa do que é o escritório, porque assim teríamos uma sala bastante ampla. Nada extraordinário. É uma idéia que muita gente tem, em todo apartamento do mundo. Mary, que adora uma reforminha, ou, de preferência, uma reformona, chegou a desenhar tudo, naqueles blocos quadriculadinhos que antes dos programas de computador os decoradores e arquitetos usavam. (Isso foi nos anos 90, antes dos programas tipo Cad.)
Mais aí pensamos mais, e pensamos, e pensamos, e, graças a Deus, deixamos a parede onde estava. Hoje, do lado da sala essa parede segura trocentos e muito mais que trocentos CDs. Do lado do escritório, a mesma parede abriga muito mais que trocentos livros.
Expliquei isso pra Lia, que me mostrava, feliz, sua linda, vazia e imensa sala. E aí a convidei a atravessar o hall do elevador e dar uma olhada na minha sala, no escritório, no corredor (onde há uma estante até o teto, em todo o comprimento, cheinha de livros e DVDs), no ex-quarto da Fernanda, hoje quarto de hóspedes e de livros e LPs e o escambau.
Lia olhou tudo aquilo ar de profundo pesar, de comiseração.
– “Não precisa nada disso”, sentenciou, firme. “Hoje tudo isso aí fica no computador e no pen-drive.”
Senti um arrepio frio me percorrendo toda a coluna vertebral.
E não é que Lia seja inculta, ou despreze as boas coisas. Num outro dia em que estive rapidamente no apartamento dela, vi que ela estava lendo um bom livro – acho que era um Simenon, mas já não tenho certeza –, em francês.
No dia em que me arrepiei, ela também sentenciou: – “Eu leio um livro e depois me desfaço dele.”
***
Quanto ao Fabio De Domenico, já contei a história dele em um texto publicado aqui. Mas velho é assim mesmo, repete as histórias, e então lá vai.
Fabio é uma figuraça, dessas que se não existissem a gente precisaria inventar. Um apaixonado por música, sabe de tudo e mais um pouco; conhece umas 432 mil bandas pós terceira geração do punk inglês de que jamais ouvi falar; das pessoas que conheço, acho que o único páreo para Fabio é Carlos Bêla. Apesar de ser um absoluto ignorante comparado com Fabio, compartilho com ele algumas coisas básicas: ele, felizmente, também gosta de Dylan, George Harrison, Mark Knopfler, James Taylor, Carole King.
Com ouvidos privilegiados, Fabio é um competentíssimo, respeitadíssimo técnico de som. Instalou o som de várias lojas da 2001, a melhor locadora de DVDs de São Paulo, o do apartamento de Fernando Henrique, o de centenas de novos-ricos – e também o meu. Um dia, alguns anos atrás, quando a febre do iPod ainda não tinha se espalhado muito, me contou, estarrecido:
– “O cara tem uma puta apartamento, coisa de nego muito rico. Comprou um som caríssimo. Instalei, era um som da pesada. Aí perguntei pra ele onde ele guardava os discos, e ele ficou me olhando como se eu tivesse acabado de cair da lua. E falou: ‘Discos? Eu não vou ocupar espaço com discos; boto tudo em MP3.’
Tomou mais um gole, e arrematou, absolutamente chocado, estarrecidíssimo:
– “Como é que o cara vai saber quem toca o baixo?”
***
Não era minha intenção me desfazer da coleção dos Pensadores. Entre a Lia, a que não guarda nada, e o Fabio, que gosta de guardar tudo de que gosta, sou muito mais próximo do jeito do Fabio.
Alguns dias atrás, observando as estantes da casa, pensei em guardar a coleção dos Pensadores, que hoje fica na prateleira mais alta aqui do escritório, na prateleira mais alta da imensa estante do quarto de visitas, atrás dos livros que estão lá. Com isso eu abriria espaço para mais livros dentro do escritório.
Naquela prateleira mais alta do outro quarto estão os livros de autores portugueses, e, em seguida – não há muita lógica, mas acabou sendo assim que arrumei – os de ficção científica, os Clarke, Asimov, Simak. E descrevo este detalhe para mostrar que mesmo os livros colocados nos lugares mais altos, acessáveis apenas se piso no terceiro ou quarto degraus da escada, podem, sim, ser acessáveis. Foi de lá que retirei há meses os dois volumões de Os Mais, e os tracei com grande alegria.
***
Então na sexta passada finalmente passei da intenção ao gesto. Botei a escada pequena no escritório e a grande no quarto de hóspedes e livros e o escambau; tirei os volumes dos Pensadores do alto da estante do escritório, desci com eles, levei-os para o quarto, tirei um pouco de pó do alto deles, me preparei para guardá-los atrás dos Eça, dos Fernando Namora, algum Saramago.
Quando subi com a primeira leva de Pensadores para botar escondidos lá no alto, me lembrei do Cícero. Das brincadeiras do Cícero duvidando que a gente fosse ler tudo aquilo.
A memória da gente é uma coisa de louco. Não me lembro sequer da maneira como o Cícero me chamava – se pelo meu nome, do qual gosto, se do apelido que ganhei no JT e não se desgruda de mim nunca, é a forma com que todos meus colegas de profissão me chamam e do qual não gosto tanto. Não me lembro disso, mas me lembro perfeitamente do rosto bonito de Cícero, sua barba espessa, sua expressão brincalhona, bem-humorada, quando duvidava que a gente fosse um dia ler tudo aquilo.
Aí, naquele momento, resolvi: vou me desfazer dos Pensadores.
Se surgir algum interessado, beleza. Se não, tento um escambo com um sebo.
E, na mesma hora, pensei em fazer um texto contando tudo isso.
É tudo uma pequena bobagem, sem interesse qualquer. Mas, como diz Fernanda, tudo agora na minha vida vira texto.
Minha filha, como quase sempre, tem razão. Tudo vira texto. É minha vingança contra os 37 anos que passei mexendo nos textos dos outros, sem tempo para escrever os meus.
E agora há a vantagem de que os textos não ocupam espaço. Como diz a Lia, tudo cabe no computador, ou no pen-drive.
Na internet não existe rama.
Julho de 2012
Este texto complementa o anúncio Abrindo mão dos Pensadores.
Delícia de texto!Consigo ver sua expressão olhando praquelas estantes entupidas, deliciosamente entupidas. Tudo bem, desfaça dos Pensadores, mas, por favor, não desfaça seu escritório, sua salinha comprida! Esse apartamento é a cara de vocês, cheio de personalidade!Não consigo vê-los dentro de uma sala linda e vazia.
É claro que a mesma está precisando de uma arrumadinha… Teto sem manchas pretas,talvez mais uma reforma nos estofados e pintura nova nas paredes. Mas,as belas coleções de CDs e DVs terão de continuar brilhando nas estantes.
E aquela estante do corredor? Ninguém possui nada tão espetacular.Beleza na forma e no conteúdo
Abraços da
Sogrinha
Achei o texto muito bacana. Lembrei da minha coleção dos Pensadores e de como me livrei dela num sebo perto de casa. Mas não ganhei nenhum espaço, lá mesmo encontrei uma porção de títulos usados que encheram a minha estante do mesmo jeito. Abç,
Careca
Legal compilador. Isto sim é texto. Não aquelas horriveis compilações anti Dilma, que tomam espaço da rama.Me livrei dos Pensadores, dos quais lí alguns. Seu texto demonstra que todo o ap. se parece na organização e na bagunça dos livros, CDs, etc…Lembrei-me da Nilze e seus recortes de jornal. Os guardados são nossa memória pentdrive, um dia descompromissado abrinos um volume de Os Maias e descobrimos a nossa idade.Tenho me desfeito de alguns livros, deixando-os abandonados num banco de praça, à própria sorte e longe do meu remorso.
Sérgio, pô!
Que texto lindo! E que saudade do Cícero. E que sábia moderna é sua vizinha. Só que não queremos ser modernos, queremos?
Não tenha inveja de mim. Livro é livro “com e sem” muito lugar pra eles.
Beijo
Vivina
Sergio que texto incrível! Senti que eu estava em seu apartamento, vendo seus livros, CDs….tal a riqueza de detalhes do seu texto! Estou amando os textos sobre livros! Abraços