Dois dos mais brilhantes contos que já li na vida estão no disco The Caution Horses, que os Cowboy Junkies lançaram em 1990. Foram escritos pelo guitarrista Michael Timmins quando era bem jovem.
Há no mundo um número absurdo de críticos de música; críticos de rock, ou rock & pop, deve haver seguramente mais de um milhão; só a Folha de S. Paulo tem uns 437, ou 438. Há seguramente mais de 437, ou 438 rótulos de música pop – e, no entanto, jamais criaram um rótulo para as canções que são contos.
Críticos literários, isso há menos que críticos de música, certamente, mas também são milhares, dezenas de milhares. A definição de conto, no entanto, é difícil. É algo fluido. Não é, de forma alguma, uma coisa absolutamente clara. Onde exatamente o conto se separa da novela? Em que especificamente o conto se difere da crônica?
Dou uma olhadinha no verbete “conto” do Dicionário de Termos Literários do professor Massaud Moisés. Oito longas colunas, concluindo com indicações para outras doutas obras. De objetivo, fica o seguinte: “narrativa breve e concisa”.
Contos sobre solidão, abandono, dor, crime, suicídio
Não sou douto em absolutamente nada, e minha opinião vale menos que uns três guaranis furados, mas, para mim, a música popular tem contos de qualidade tão grande quanto os de Tchecov, Hemingway, Fitzgerald, Dalton Trevisan, e quem mais houver.
Milton Nascimento, voz de sino de cobre, compositor de belíssimas melodias, que costuma se atrapalhar com as palavras quando tem que falar, tímido que é, escreveu, quando muito jovem, um conto perfeito, chamado “Morro Velho”, em que narra a amizade de dois garotos, que, muitos anos mais tarde, se reencontram, já adultos, de lados opostos na escala social. O professor Massaud Moisés talvez questionasse a definição de conto para “Morro Velho”, já que, segundo ele, os contos decorrem “num restrito lapso de tempo, horas ou dias”. “Caso o tempo se dilate, parte dele se escoa sem carga dramática”, ensina. No conto de Milton, há duas épocas diferentes – mas é narrativa breve e concisa, e então é um conto.
Paul Simon, também quando bastante jovem, escreveu alguns belos contos sobre dor, solidão, suicídio, crime. “Richard Cory” e “A Most Peculiar Man” falam de dois homens que se matam – um milionário, o primeiro, um pobre solitário, o segundo. Nos dois, assim como em “Morro Velho”, o narrador é externo – relata os fatos em terceira pessoa. Em “Wednesday Morning, 3 A.M”, Simon cria um conto narrado na primeira pessoa: quem relata os acontecimentos é o rapaz que acabou de assaltar uma loja e agora, no meio da madrugada, teme a chegada da polícia, enquanto a namorada dorme a seu lado, seu peito arfando sob a roupa pouca. A narrativa deve ter fascinado o jovem artista, porque, no ano seguinte, ele reescreveu a mesma história, embalada numa melodia bastante diferente, em “Somewhere they can’t find me”; o que era uma gentil melodia folk se transforma num pop acelerado, ritmado, mas o roubo é o mesmo, e alguns versos permanecem idênticos.
O jovem Paul Simon reescreveu seu pequeno conto sobre o garoto que assalta uma loja como Dalton Trevisan passaria a vida reelaborando suas próprias histórias.
E mesmo “The Boxer”, o que é “The Boxer”, se não um breve, conciso, emocionante conto sobre um rapaz que vem do interior para a metrópole à procura de emprego e as únicas ofertas que recebe são das putas?
“Eleonor Rigby”, que impressionou o mundo porque Paul McCartney mostrava que os Beatles sabiam fazer música de câmara, para violino, viola e violoncelo, é também um belo conto, o pobre padre McKenzie cerzindo suas próprias meias e preparando as palavras de um sermão que ninguém ouviria. Para ornar outra peça de câmara do fantástico melodista que é, “She’s leaving home”, McCartney faria outro pequeno conto, em que descreve, de forma breve, concisa, o dia em que um casal acorda e descobre que sua filhinha simplesmente desapareceu – caiu no mundo, foi se encontrar com o comerciante de carros.
No conto de McCartney, a garota foge de casa na quarta-feira. No conto de Simon, o garoto se esconde após assaltar a loja na quarta-feira. Por que será que as quartas-feiras fascinam tanto os contistas da melhor música pop que existe?
“E eu até que gosto desses centímetros a mais na minha cama”
A personagem do belíssimo conto do guitarrista canadense Michael Timmins, ela mesma a narradora da história, acorda numa terça-feira, e não numa quarta. O título do conto-canção é “Sun comes up, it’s Tuesday morning”. O sol bate nos olhos dela, e o primeiro pensamento que tem é de que o namorado se esqueceu de fechar as cortinas. Pouco depois cai a ficha: não foi ele, foi ela mesma. Até porque, na noite anterior, ele já não estava mais na casa dela.
A personagem-narradora se dirige o tempo todo ao amante que não há mais. Conta para ele, que não está mais lá para ouvi-la, os fatos que foram se desenrolando ao longo daquela terça-feira. Tocou o telefone, mas ela não quis atender, até porque todo mundo sabe que as boas notícias sempre dormem até o meio-dia. Ela pensa em fazer um chá e uma torrada de novo, mas decide ir até a vizinha Jenny. Jenny exibe uma mancha negra em torno dos olhos, e confessa que o seu namorado, Bobby, perdeu os modos na noite anterior.
Na hora do almoço, ela chega a começar a discar o número do namorado, mas desiste: prefere ouvir Coltrane a enfrentar toda aquela merda de novo. Passa então a tarde sem fazer nada, só ouvindo música e vendo o sol se pôr. E imagina que talvez à noite pudesse ver um filme, um pacote de pipocas só para ela, preto-e-branco, com uma mulher forte no papel principal. E, se por acaso não gostar, resta sempre a opção de sair, ir para a rua, para um bar.
“E aqui vem aquela sensação da qual tinha me esquecido: como são estranhas estas ruas quando você está sozinho, cada par de olhos cheio de sugestões. Então eu baixo a cabeça, vou reto para casa, fervendo por dentro. Engraçado, nunca tinha notado o som que os bondes fazem ao passar pela minha janela. O que me faz lembrar, esqueci de fechar as cortinas de novo. Sim, claro, admito que há momentos em que sinto falta de você, especialmente como agora, em que preciso de alguém pra me abraçar, mas há algumas coisas que nunca podem ser perdoadas, e eu até que gosto desses centímetros a mais na minha cama.”
***
Ah, mas puta que o pariu!
Só as palavras, só o conto escrito em palavras já é um brilho, o primeiro dia da mulher solitária depois que o amante vai embora, a primeira terça-feira do resto de sua vida sem o cara – e as diversas referências à opressiva falta dele, e a ironia repetida de dizer que na verdade ela está curtindo o vazio que ele deixou na cama.
Com a melodia triste, pesada, lenta, criada por Michael Timmins, e a voz de sua irmã Margo (na foto acima), uma voz expressiva, profunda, um tanto grave, que sai sem qualquer esforço, que faz questão de não ser ampla, “Sun comes up, it’s Tuesday morning” é uma das canções que mais me encantam na vida. The Caution Horses é de 1990 – faz 22 anos que ouça “Sun comes up…”, e jamais me canso de ouvi-la.
Quando um dos meus casamentos acabou, o que acabou não por minha vontade, ouvi essa música umas trocentas vezes. Depois continuei a ouvi-la não porque ela me lembrasse da minha separação que não queria, mas simplesmente porque é bela demais.
O You Tube tem a gravação original, de estúdio.
De novo, a narradora se dirige ao amante que não existe mais, se dissolveu no passado
“Sun comes up…” é urbanóide até a medula, até a dor de cada verso. Passa-se necessariamente em uma cidade grande, uma metrópole. Quando a ouvi na época do lançamento do disco, imaginava as ruas de Toronto à noite – os Cowboy Junkies são de Toronto, e eu tinha tido a sorte de conhecer a metrópole canadense pouco antes. Mas pode ser qualquer grande cidade. Como dizia aquele personagem de Easy Rider que se recusava a dizer o nome da cidade de onde tinha saído, todas as grandes cidades são iguais.
O outro conto maravilhoso escrito por Michael Timmins e cantado/contado pela voz hipnotizante da bela Margo no disco de 1990 é suavemente mais country. A protagonista-narradora é essencialmente urbanóide, também – mas a ação pode se passar num bar de estrada, ou num bar de cidadezinha próxima à metrópole.
Não vou tentar fazer uma adaptação de “Where are you tonight”, como tentei fazer como “Sun comes up…” Vou tentar fazer uma versão. Ficará bem mais pobre que o original, é claro. Mas acho que será menos ruim do que tentar relatar o que o original relata muito melhor.
De novo, a protagonista-narradora se dirige ao amante que já não existe mais, que se dissolveu no passado.
É preciso imaginar o bar na beira da estrada, ou no centro da cidadezinha pequena do interior perto da cidade grande. É preciso imaginar que haja muita fumaça de cigarro no bar. Se não houver fumaça de cigarro, se formos ser não-nicotinamente corretos, então simplesmente não há a história.
Tem um rapaz no canto brincando de doido a noite inteira,
As bolachas se empilhando alto na mesa
Ele pede Wild Turkey e, com um gesto rápido e um sorriso,
Diz “minha cara, você é aquela que eu vestiria de pele”.
Mas seu boné de beisebol e seu jeitão de frequentador de bar me conta uma história completamente diferente,
Que este não é o príncipe que atenderá a todos os meus desejos.
Apenas mais um garoto caipira solitário cansado da noite,
Apenas mais um garoto com uma pia cheia de pratos sujos.
E onde está você nesta noite?
Quando deixei você em meus sonhos na noite passada
Você prometeu que estaríamos livres um do outro.
Onde está você nesta noite?
Ele me conta sobre as estradas secundárias e como vamos andar por elas a noite inteira,
Como os dias vão sumir e a lua vai ficar no alto para sempre
E a nuvem de poeira que vamos soltar ficará presa a nós como uma alma
E o mito vai crescer sobre os dois que se recusaram a se render
Mas quando eu nos vejo no espelho do bar, ele com seu braço nos meus ombros,
Essa moça que vejo se tornou tão desconhecida.
E enquanto ela fica de pé para sair ao lado de um desconhecido
Ela não consegue deixar de rir da vida que ficou tão estranha.
E onde está você nesta noite?
Acho que não vou conseguir enfrentar a luz amanhã
Sem saber se você estará lá para me guiar.
Onde está você nesta noite?
Onde está você nesta noite?
Acho que vou conseguir sobreviver, afinal,
Mas gostaria tanto de ter você pelo menos mais uma vez a meu lado.
***
Ah, mas puta que o pariu!
A protagonista-narradora olhando para o espelho e vendo uma mulher estranha, diferente, que ela não reconhece, faz lembrar “Those Were the Days”.
E, no mesmo disco The Caution Horses, os Cowboy Junkies ainda fizeram um cover de “Powderfinger”, de Neil Young – outro conto, um conto um tanto chegado ao fantástico, em que o narrador está morto.
Mas aí acho que já são outras histórias, outros posts.
Janeiro de 2012
Sun comes up, it’s Tuesday morning
(Michael Timmins)
Sun comes up, it’s Tuesday morning
Hits me straight in the eye, guess you forgot to close the blind last night
Oh, that’s right. I forgot. It was me.
I sure do miss the smell of black coffee in the morning
The sound of water splashing all over the bathroom
The kiss that you would give me even though I was sleeping
But I kind of like the feel of this extra few feet in my bed
Telephone’s ringing, but I don’t answer it
‘Cause everybody knows, good news always sleeps till noon
Guess it’s tea and toast for breakfast again
Maybe I’ll add a little TV too
No milk! Oh God how I hate that
Guess I’ll go to the corner, get breakfast from Jenny
She’s got a black eye this morning, Jenny how’d ya get it
She says, Last night, Bobby got a little bit out of hand
Lunchtime, I start to dial your number
Then I remember so I reach for something to smoke
Anyways I’d rather listen to Coltrane
Than go through all that shit again
There’s something about an afternoon spent doing nothing
Just listening to records and watching the sun falling
Thinking of things that don’t have to add up to something
And the spell won’t be broken by the sound of keys scraping inthe lock
Maybe tonight it’s a movie
Plenty of room for elbows and knees
A bag of popcorn all to myself
Black and white with a strong female lead
And if I don’t like it, no debate, I’ll leave
Here comes that feeling that I’d forgotten
How strange these streets feel when you’re alone on them
Each pair of eyes just filled with suggestion
So I lower my head, make a beeline for home
Seething inside
Funny, I’ve never noticed
The sound the streetcars make as they pass my window
Which reminds me, I forgot to close the blind again
Yeah sure I’ll admit there are times that I miss you
‘Specially like now when I need someone to hold me
But there are some things that can never be forgiven
And I kind of like this extra few feet in my bed
Where are you tonight?
(Michael Timmins)
There’s a young man in the corner playing Crazy all night long
Quarters piled high upon the table
He orders Wild Turkey and with a quick wit and a smile
He says, my darlin’ you’re the one I’ll drape in sable
But his baseball cap and his barroom rap tell me a differentstory
That this is not my prince to grant all my wishes
Just another lonely country boy grown weary of the night
Just another boy with a sinkful of dirty dishes
And where are you tonight
When I left you in my dreams last night
You promised me that we would be breaking free
Where are you tonight
He tells me of the back roads and how we’ll ride them all nightlong
How the days will fade and the moon will hang forever
And the cloud of dust we’ll kick off will linger like a soul
And the myth will grow that the two will refuse to surrender
But as I catch us in the barroom mirror with his arm around myshoulder
This girl I see has grown so unfamiliar
And as she stands to leave with the stranger by her side
She can’t help but laugh at a life grown so peculiar
And where are you tonight
I don’t think I can face tomorrow’s light
Not knowing if you’ll be there to guide me
Where are you tonight
And where are you tonight
I think I can make it through all right
But I’d love to have you just one more time beside me
Gosto imenso deste album e também do anterior gravado ao vivo na Church of the Holy Trinity -Toronto(sem público e sem truques) “The Trinity Session”.
Ah, meu caro José Luís, que maravilha ver que seu gosto musical é apurado como o cinematográfico!
Um abraço!
Sérgio