Temo que Robert Redford não se aguente

Confesso: enganei-me. Há três anos, em conversa musculada e gritada com um amigo meu que é economista, jurei que a crise larvar de 2008 era o sonho húmido de um pessimista. Profético, berrei: “Vai passar! Vêm aí tempos de leite e mel.” O meu amigo, teimoso como burro, insistiu. E eu atirei um prato ao chão só para não lhe dar com ele na cabeça.

Queriam saber de quem é a culpa? É minha! Aquela conversa mudou o destino das finanças pátrias: o meu exaltado optimismo inchou o deficit; a dívida soberana tropeçou na minha descabelada ingenuidade. O meu amigo assustou-se e foi viver num resort, em Moçambique: pés descalços e preguiçosos, lânguido calção de banho, por vezes uma camisa havaiana, come lagostas com as mãos. Nem em Itapoã Vinicius sonhou gozar tardes destas, quanto mais dias: o Índico ali, estúpida e mansamente verde.

Portugal passa pelo que passa e a culpa é do irresponsável que redige esta crónica. Faça-se justiça, mereço a prisão. Em tirocínio, fui ver filmes. Fugi de obras-primas como diabo da cruz e escolhi um, honesto e competente, do bom ano de 1980.

Entrei em Wakefield, a prisão de Brubaker. Cheguei de autocarro, com mais condenados e Robert Redford. Também ele vem cumprir pena. Ele é Brubaker e esconde na farda de presidiário a identidade de novo director dos calabouços. É uma solução para futuros primeiros-ministros: começarem clandestinos pela cadeia.

Ainda presidiário, o cabelo loiro de Redford vai pôr-se em pé com o que vê: um hediondo caldeirão de violência, corrupção. A administração é complacente e ociosa, os guardas regalam-se com a extorsão dos presos, comida que não se põe no prato de um cão, maus tratos a deixarem roxos os saudáveis olhos azuis de Redford.

É então que a identidade de Redford se revela. Para salvar Morgan Freeman, já a adivinhar a personagem de The Shawshank Redemption (*). Todos ficam a saber que Redford, ou seja, Brubaker, é o novo director.

Chega, alvoroçada, a reforma. Brubaker traz mesmo ao colo a reforma: um punho para esmagar a corrupção intestina, uma faca lúcida para cortar as gorduras da prisão. Mas a prisão é mais do que a prisão. Volto aos cabelos louros de Redford, aos seus olhos azuis: o que os espanta agora não é a prisão, é a rua ou, como é que se diz, os interesses. Todos se cevam naquele porco: as seguradoras que seguram sem segurar, as construtoras que constroem para que caia, o comércio que fornece com desvios, mesmo os teóricos da reforma que “no sítio certo, dizem as coisas certas” com a condição de que não se estrague a teoria com prosaica execução.

Insisto, os idealistas olhos azuis de Redford, o seu cabelo dourado, não podiam imaginar que a prisão fosse tão vasta, uma cidade inteira, afinal. Receio que Redford não se aguente. Prisão por prisão, que se lixe Brubaker, ala para Portugal.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

 

* The Shawshank Redemption: no Brasil, Um Sonho de Liberdade.

 

Um comentário para “Temo que Robert Redford não se aguente”

  1. Sentem-se os países bem abastados e nada os preocupa, então, como diz o bom ditado, (quantos ditados ouvi na minha infância, sempre vindos da minha vovó portuguesa)tranca-se a porta depois que o ladrão já veio!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *