No tempo de Dick Tracy na Sala de Imprensa

Dick Tracy entrando na chefatura de polícia? Bem, o personagem usava capa de chuva e chapéu, como o detetive das tiras dos jornais americanos da década de 1930. Mas não era um detetive, era um repórter policial.

Não estava nos States, mas na moderna São Paulo de 1957. A chefatura era na verdade a Central de Polícia, ao lado do Pátio do Colégio. A vestimenta do repórter ficava um tanto deslocada no tempo, mas ele não se importava. Seu nome: Maurício de Souza.

Ficou um ano nessa vida. Depois seguiu seu destino de desenhista, e inventou Bidu, Franjinha, e toda a turma da Mônica. Outro desenhista famoso foi Chester Gould, que criou Dick Tracy. Durante aquele ano, Maurício foi um desenho de Chester Gould.

Eis o que diz hoje: “Eu me fantasiava de detetive americano porque era tímido. Vestido como herói, tinha coragem para falar.” Um repórter policial detetive com um ponto fraco: não podia ver sangue que desmaiava.

A Sala de Imprensa da Central de Polícia parecia um filme em preto-e-branco, com o tic tac das máquinas de escrever como trilha sonora. Os jornalistas ora se agitavam com fatos importantes, ora viviam o tédio de esperar pela notícia. Nestas horas, a jogatina corria.

Jogavam cartas ou dados, a dinheiro. No calor do jogo gritavam, brigavam. De repente, o telefone tocava. Repórteres vestiam o paletó, fotógrafos pegavam a Rolleiflex e o flash, e saíam todos apressados. Em algum lugar da cidade, podia haver um corpo crivado de balas. Ou isto será cena de filme?

Era a realidade, como atesta João Bussab, um dos mais conhecidos repórteres policiais dessa época. Bussab era rádio-escuta da TV Tupi, canal 3, com suas transmissões em preto-e-branco. Em 1963 foi cobrir as férias de um colega, na Central de Polícia, para os Diários Associados. Ficou 14 anos.

Quase colada à sala dos jornalistas ficava a do delegado de plantão. Certo dia, lembra Bussab, o delegado invadiu a sala de imprensa, apreendeu o baralho, e autuou os repórteres em flagrante por jogo de azar.

O azar foi do delegado. Outros repórteres se mobilizaram e procuraram o secretário da Segurança Pública, para explicar que o jogo era apenas uma forma de matar o tempo. O flagrante foi relaxado, e o delegado, transferido para outro distrito.

Além da timidez, Maurício de Souza tinha aquele outro sério problema. “Era uma coisa horrível, eu não podia ver sangue que desmaiava”. No local de um crime, pedia socorro ao fotógrafo. “Ele olhava o corpo e me dizia como estava, se era em decúbito ventral (barriga para baixo)” – conta, divertindo-se com o linguajar técnico.

Maurício trabalhava de madrugada, se é que se pode dizer isso. Naquelas em que nada acontecia, e como não aderisse ao jogo, juntava as mesas (podia ser a da Folha, onde trabalhava, a dos Diários Associados, a da Última Hora, do Estadão), e assim tinha uma cama “grande como de casal”. Fazia um travesseiro de jornais amassados, deitava-se e dormia…

É verdade que, em plena madrugada, podia ser incomodado por uma notícia. Neste caso, pedia condução e fotógrafo, e a Folha da Manhã (hoje Folha de S.Paulo) mandava o carro da reportagem, um jipe laranja.

Eventualmente podia chegar também o jipe dos Diários Associados (que Bussab, em outras horas, também usava). Naquela época, a periferia da cidade não era asfaltada.

Muitas vezes Maurício se deparava com um crime passional, o marido pegou a mulher com o amante, ou vice-versa. “Na confusão, a polícia ali, a família chorando, eu cumpria ordens do jornal: roubava a foto do casamento.”

A foto era uma ótima ilustração para a reportagem. Maurício achava “uma coisa desrespeitosa”, mas se consolava. “Se eu não pegasse, um colega pegaria.”

Na Sala de Imprensa os jornalistas se davam bem, procuravam ser solícitos uns com o outros. Mas amigos, amigos, furo à parte.

Certo dia explodiu nos jornais o caso de um mafioso que tentara matar a tiros o dono da famosa Boate Michel, da Rua Major Sertório, na Boca do Luxo. Começa a caçada ao criminoso (que acertara a vítima, mas não a matara) por toda a cidade.

Bussab ficou na cola de certo competente policial. “Fui com ele para as bocas.” Chega o sábado, a Sala de Imprensa está calma. O mesmo policial chama Bussab, discretamente, como este recorda: “O cara está preso aí embaixo.” Aí embaixo era o xadrez.

Bussab, também na moita, pede fotógrafo. Descem ao xadrez e passam bom tempo com o preso. Na segunda-feira, os Diários saem com o furo estrondoso.

Naqueles tempos, em que o delegado Israel dos Santos Sobrinho, o “Gravatinha”, fazia pregações de moral para os presos, algo muito curioso ocorria na Sala de Imprensa. O repórter Sílvio Nunes, o Espaguete, vivia sob intensa vigilância.

O apelido vinha do fato de que, toda noite, jantava a massa, num restaurante próximo. Quem vigiava Espaguete era Dona Laura, sua mulher. Ela se sentava em uma cadeira, dentro da Sala de Imprensa.

Quando o marido saía no jipe do Diário da Noite, Dona Laura ia junto. Os jornalistas gostavam muito de Espaguete, educado e amável, que, por brincadeira, chamava os outros de “meu caro caríssimo”.

Por solidariedade ao colega, os repórteres proibiram que a mulher ficasse na Sala de Imprensa. Ela e sua cadeira saíram… mas se instalaram no corredor, à porta da sala.

Conta-se que, depois, o jornal proibiu que “estranhos” viajassem no carro da reportagem. E que Dona Laura seguia o carro de táxi. Mas isto é apenas o que se conta.

Num fim de plantão, Maurício de Souza passou pela sala do delegado e a encontrou vazia. Foi ao cartório, não havia ninguém. As viaturas policiais, que ficavam à frente do prédio, não estavam lá. Em uma sala onde chegavam informações, encontrou, junto ao telefone, um papel com um endereço no Belém, na zona leste.

Pediu o jipe e partiu. A rua do Belém estava cheia de carros da polícia, policiais agitados, muitos curiosos. Dick Tracy pulou um cordão de isolamento e subiu as escadas do sobrado em frente. Lá em cima, deu com o delegado do plantão.

“Ele me disse: ‘O que você está fazendo aqui?’ Não vai poder escrever uma linha sobre isto.” Foi impedido de se mover e de sair da casa. Mesmo assim, deu uma espiada num cômodo e viu o corpo de um homem.

Mais tarde chegaram repórteres de rádio e de televisão, e o delegado viu que não tinha como segurar a notícia. Contou então o que acontecera. O pai do governador do Estado, Jânio Quadros, fora assassinado.

Maurício prefere não dizer por quê. O noticiário da época registra que Gabriel Quadros foi morto por um vendedor de limões que o flagrou com sua mulher. No fundo, mais um crime passional na cidade.

O sobrado do século 19 está para se revelar de novo

Como uma noiva que se veste para o casamento, a Casa Número 1 não pode ser vista. Esse antigo sobrado, de fins do século 19, está com obras de restauro prestes a terminar. A Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo só vai mostrá-lo quando tudo estiver de acordo com o figurino.

No entanto, mesmo com tapumes cobrindo o térreo, dá para ver que ficou muito bonito. A fachada, com janelas altas e balcão, e o belo ornamento do telhado, é um presença de certa forma inesperada, na rua.

O endereço era Rua do Carmo, número 1. A primeira casa da rua, vizinha ao Pátio do Colégio, o lugar em que São Paulo começou. Em meados do século passado, aquele trecho da rua passou a se chamar Roberto Simonsen. O sobrado ainda é a primeira casa, mas agora sob o número 136-B.

O bandeirante Gaspar Godoy Moreira foi um dos primeiros moradores. Depois, ainda no século 19, a construção abrigou um colégio, foi sede de uma empresa de serviços, e de uma “Sociedade de Imigração”, até passar para a Companhia de Gás. A partir de 1910 sediou órgãos policiais.

Durante décadas, esteve ali a Central de Polícia, para onde convergiam as informações sobre todas as ocorrências da cidade. Com isso, os repórteres dos jornais ficavam de plantão ali dia e noite.

Para abrigá-los, a Secretaria da Segurança cedeu uma sala, onde puderam ter mesa e máquina de escrever. A Sala de Imprensa tinha setoristas de todos os jornais. De lá, saiam para cobrir crimes e acidentes na cidade, como se mostra a matéria acima. Foi assim até 1970, quando a polícia deixou o prédio e este passou para a Prefeitura.

Esta reportagem foi originalmente publicada no Diário do Comércio, em julho de 2011.

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