Meu segundo pensamento

Toda vez da primeira vez de uma arrumadeira em casa, penso no destino de minha coleção de caixinhas. Se é que tenho uma coleção de caixinhas.

Não sei – direito – o que é uma coleção. Só mais ou menos.

Mais ou menos, sei um colosso de coisas. Direito, poucas. Pouquíssimas.

Não sei direito se tenho uma coleção de caixinhas, por dois ou três motivos. Talvez quatro.

Primeiro, elas não são tantas assim. Segundo, apenas uma tem gosto de infância. Terceiro, não me lembro delas todos os dias. Quarto, nem em todos os lugares.

Na farmácia, por exemplo, não me lembro. Na farmácia, não me lembro de nada. Só da balança e do meu celular. Mas isso é outra história.

As caixinhas. Quando alguém volta de alguma viagem, dizendo que me trouxe uma lembrança, meu primeiro pensamento nunca é para uma caixinha. É para um lápis, mas isso também é outra história.

O segundo pensamento, não menos importante nem menos afetuoso que o primeiro, voa para as caixinhas, espalhadas em dois ou três pontos da casa. Talvez quatro.

Algumas, elaboradas, exigentes. Outras, rústicas, displicentes.

Quase todas de lugares diferentes.

A de cactos, deserto do Atacama.

A de capim dourado, aeroporto de Belo Horizonte, dia muito triste.

A de cobre, espelhinho do lado de dentro, figura de uma santa do lado de fora, gosto de infância, presente de avô.

A de porcelana, Nevers, interior da França, dia da foto na Rua Marguerite Duras.

A de junco, Campos do Jordão, loja com tantas caixinhas bonitas, que me proibi de voltar lá.

A de casca de laranja desidratada, dei uma igual pro meu tio, há muitos anos, quando ele fez oitenta.

A de prata, peregrina, Santiago de Compostela.

A dourada, retrato de Maria Antonieta, lojinha do museu, Versailles.

A de mosaico, museu do Gaudí, Igreja da Sagrada Família.

A de madeira, Caminito, pirogravura de um casal dançando tango.

A de pedra sabão, pesada, Paraty.

A de papier maché, levinha, feira de domingo, Avenida Paulista.

A de cerâmica, galo colorido, Portugal.

A de papelão comum, bazar de natal de voluntários bem intencionados.

A de palha trançada, ah!  

Pequena pausa na crônica, andanças pela casa, faço o que nunca havia feito. Quase cem caixinhas. Muitas, penso. Muitas. 

Não sei direito se são coleção. Apenas uma com gosto de infância, difícil saber.

Indiferentes às minhas indagações, as sucessivas arrumadeiras, cada uma à sua maneira, têm cuidado delas.

A mais antiga, ousada, assustava todo mundo. Colocava cada caixinha, mesmo as mínimas, na estrema beirada de tudo. Estantes, mesas, extrema beirada. Zona perigosa, grupo de risco. 

Cuidando para não esbarrar nem em suas sombras, eu as salvava, empurrando, uma a uma, de volta ao centro do mundo. Por uma semana, até que as mãos ousadas as conduzissem – de novo – ao despenhadeiro.

Uma outra, apressada, juntava-as tão estreitamente, que elas – trânsito engarrafado – se atropelavam e se amontoavam, sem direito a buzinas.

Cuidando para que não se machucassem, eu as afastava, uma a uma, até onde o bom senso indicava. Por uma semana.

Outra, racional, escondia as pequenas dentro das grandes, infinitamente, me suprimindo o prazer de contemplá-las e de lembrá-las. Infinitamente.

Cuidando para que retomassem o espaço de direito, eu as libertava, uma a uma. Contemplava-as, lembrava-as. Por uma semana.

Outra, detalhista, selecionava-as pela matéria prima. Madeiras de um lado, cerâmicas de outro, metais, porcelanas.

Nenhum risco, desnecessária qualquer atitude. Mas, madeira com madeira, metal com metal? Pouco criativo, pensava.

Outra, a atual, separa tudo por tamanhos. Maiores pra lá, menores pra cá. Água e vinho, compartimentos estanques.

Desconsolada, sonho sonhos simples, miúdos.

Sonho com minhas caixinhas – que nem sei direito se são uma coleção – ordenadas desordenadamente. Arrumadas desarrumadamente. Classificadas desclassificadamente.

Sonho com minhas caixinhas, solidárias, muitas e uma só, testemunhas de tantas viagens – minhas e alheias – seguindo viagem.

Sobrevoando o Atacama, passeando na Paulista, fazendo o caminho de Santiago de Compostela. Indo, vindo, indo.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.com.br.

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