Livros da Fernão Dias

Algumas seis vezes por ano, quando a saudade começa a falar alto, ou quando precisam de mim – coisa rara –, tomo o rumo de Minas.

Café amargo, bagagem quase nenhuma, despedidas rápidas, “semana que vem eu volto”.

Escravo do portão automático, o porteiro ordena que ele me liberte, e ganho as ruas de todos os dias, familiares.

Uma estação de metrô aqui, outra ali, trajetos rápidos, Terminal Tietê, guichê de passagens, assento ao lado da janela, ônibus das dez, – “boa viagem” –, escada rolante, cafezinho, plataforma Um, ônibus encostando, pontual, quem diria.

Mochila quase vazia, ajeito-a com facilidade no bagageiro, sobre a janela. Antes, procuro – e encontro – entre badulaques e bugigangas, o livro da viagem. Viagens. Ida e volta.

Algumas seis vezes por ano, a não ser que o mundo acabe, tenho encontro marcado com alguns autores, na maior rodoviária da cidade.

Solícitos, eles me contam suas histórias durante, mais ou menos, mil quilômetros de retas e de curvas, sobretudo de curvas. Metade na ida, metade na volta.

O espanhol Alberto Vasquez-Figueroa, que meus irmãos e alguns amigos, inconformados, insistiam para que eu conhecesse –“já passou da hora, diziam” –, me encontrou em um dia de muita chuva.

Com medo de que alguma gota invadisse e inundasse o ônibus, quase o deixei em casa, na estante, sossegado, ao lado de colegas vindos daqui e dali. Vai ser melhor pra ele, pensei.

Não seria melhor pra mim, lembrei, ouvindo o eco das palavras de meus irmãos e de alguns amigos.

Mais por eles que por mim, coloquei-o na mochila e, Fernão Dias afora, lá fui eu me emocionar com as aventuras de Tuareg, beduíno que me conquistou imediatamente, não me deixando cochilar em quilômetro algum. Nem na monotonia das retas.

Nos dias mineiros, não nos procuramos. Fidelidade conta, e se o encontro é na viagem, na estrada e no balanço das curvas, metade na ida, metade na volta, terras firmes não valem. Ou melhor, valem. Pra outras personagens, vindas de outros recantos. Sem mochilas, sem plataformas de embarque.

Semana seguinte, caminho inverso, saudade de casa e da história, lá vou eu, Fernão Dias afora, me comovendo com aquele tuareg. Esse cara vai me fazer chorar, penso, já não sabendo se me refiro ao autor ou à personagem, ambos um só.

A poucos quilômetros de São Paulo, sei que a história vai terminar. E sinto que, pior que chorar, será não ter com quem comentar absolutamente nada. Nem uma linha.

Reparo em meus companheiros de viagem. Muitos, sonolentos. Alguns, gulosos. Outros, falantes. Outros, quem sabe?

Onde, meus irmãos e amigos, fiéis e leais? Como podem me deixar assim, sozinha, abandonada, no meio da estrada, corpo e alma invadidos e inundados por uma avalanche de emoções imprevistas, ainda que sutilmente anunciadas, página a página, curva a curva, Fernão Dias afora?

Livro fechado, história encerrada, olhos úmidos, emoção contida, ônibus cheio e vazio, senti – e vivi – um momento de intensa solidão.

À noite, telefonema para minha irmã, no interior mineiro. Que ela soubesse, e os outros – irmãos e amigos – também: eles estavam certos, todos. Estava passando da hora, sim, há muito.

Há muito, eu poderia ter ligado minha história à daquele peregrino do deserto, alma reta, curva nenhuma. Muito diferente da Fernão Dias.

Há pouco, nem um mês, dia de muito frio, liguei minha história à dos imigrantes japoneses.

Terminal Tietê, passagem na mão – “boa viagem” –, cafezinho, plataforma Um, mochila – quase vazia – no bagageiro, abro Arigatô, presente de meu amigo, Jorge Nagao.

Escrito por dois jornalistas, Jhoni Arai e César Hirasaki, o livro é bilíngüe, fato que me divertiu, retas e curvas afora.

Após ler cada página ímpar, eu me dava ao luxo de brincar com as pares, povoadas de riscos, traços e desenhos que, por mais que me esforçasse, não conversavam comigo. Apenas números e datas eram fielmente reproduzidos, lá e cá.

Editado com cuidado, Arigatô traz, além dos idiomas duplos, fotos enriquecedoras, que ilustram a história comovente daqueles que, em 1908, deixaram sua pátria, fascinados pelo “ouro” extraído de milhares e milhares de pés de café.

O ouro era real, sim. Não para eles, perceberam logo. Não para imigrantes falando uma língua incompreensível, cultivando costumes desconhecidos, estranhando a comida local.

Se promessas e sonhos ficavam cada vez mais distantes, desgraças e doenças – tsunamis brasileiros –, brotavam como sementes.

Cansados – nunca desesperados – de conviver com perdas e mortes, os sofridos – e valentes – imigrantes fizeram trocaram de sementes.

De batatas a hortaliças, de coragem a perseverança, incansavelmente, eles semearam.

Aos poucos, pacientemente, colheram. E começaram a vender. E fundaram, em Cotia, a primeira cooperativa agrícola do Brasil.

Arigatô poderia ser apenas um registro correto da trajetória brasileira do povo japonês, tão bem integrado à vida, nesse lado do mundo.

É muito mais. É o registro comovente da trajetória brasileira de um povo que soube, sim, encontrar o ouro prometido.

Ausente dos cafezais, ele se encontrava entre seus próprios compatriotas. Escondido em olhos amendoados, quase fechados. Em mãos calejadas, sempre abertas. Em mentes incrivelmente perseverantes.

Que meu amigo Jorge Nagao ouça, nas entrelinhas desse texto, um comovido “Arigatô” pelo mais recente usuário das retas e das curvas da Fernão Dias. Sobretudo das curvas.

 Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.

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