In vino veritas

Ele era um gentil-homem e gostava de vinhos. Não sei se estas duas realidades são siamesas, até porque conheço muitas pessoas que, mesmo sem apreciar um generoso Bordeaux ou alguns brancos de Sauternes-Barsac, são irrepreensíveis cavalheiros. Mas esse senhor a que me refiro, tendo morrido faz alguns meses em sua bela propriedade num sopé de montanha no Rio Grande do Sul, um dia, aqui em Campinas, me fez um pedido. E se agora sento no computador para batucar o cumprimento da promessa que lhe fiz, é que suas palavras vêm me perseguido desde que soube do seu, como se dizia antigamente, passamento.

Tudo começou quando, há muitos anos, fui ao Sul fazer uma reportagem sobre vinhos. Tive então a ajuda de um colega da Folha da Tarde gaúcha que reproduzia, em Porto Alegre, minhas crônicas que, em São Paulo, saiam no jornal homônimo, pertencente à Folha de S. Paulo. Expliquei o que pretendia e fui levado ao poeta Mário Quintana, que conhecia muita gente do ramo.

– Olha – ele me disse, – vou te apresentar ao Milito, nosso melhor enólogo.

 A bela figura morava numa lindíssima casa no bairro Moinhos de Vento, e me recebeu, ainda mais levado pelo famoso bardo, como se eu fosse o rei da Inglaterra. Expliquei rapidamente o que pretendia, porém antes que pudesse falar mais, perguntou se eu gostaria de tomar algo especial. Como estudara umas coisinhas a fim de me preparar para a matéria, indaguei, com ares de conhecedor, se em sua adega tinha rótulos da região de Côte Chalonnaise. Ele abriu um belo riso, deu três tapinhas em minhas costas, para só então soprar:

– Ah, estou vendo que gostas de um Bourgogne… Mas deixa eu te oferecer um Chateau Tours Baladoz, tinto da região de Saint Emilion.

Bom, daí em diante Milito me forneceu todos os dados que eu necessitava para a matéria, e lembro exatamente suas primeiras palavras:

– Olha, o vinho tem desempenhado um importante papel em todas as civilizações. Basta que te diga que 2.000 anos a.C já era cultivado na Península Ibérica pelos Tartessos, os mais antigos habitantes daquela região.

– Não é à toa – acrescentou o poeta Mário Quintana, sentado ao lado — que sempre se referem à nobre bebida como “o sangue de Cristo” ou “dádiva dos deuses”…

Recordo bem que quando perguntei quem teria inventado o vinho, Milito me disse que seria tão difícil descobrir isso como saber quem bolou a primeira roda. E parece que ainda escuto o que murmurou, com algo de paixão, ao me mostrar, colocando contra a luz, taça com um verde:

– Isto é mistura de aroma e agulha, com fermentação malolática.

Pois bem, depois desse papo muitas vezes encontrei meu entrevistado, até porque uma de suas filhas morava em Campinas, casada com o presidente de uma multinacional com filial aqui. E o segredo que viveu entre nós criou-se em função de um episódio realmente exótico. É que, em certa manhã de inverno dos anos 80, fria, muito fria até para os padrões paulistas, encontrei Milito encostado ao balcão de um boteco relativamente sórdido ali pelos lados do lendário Mercadão campineiro, a beber um daqueles vinhos vagabundos servidos em copinhos de pinga. Quem sabe até, com todo respeito, o famosíssimo Chapinha.

– Vou te revelar um segredo – soprou – e inclusive peço que prometas escrever uma crônica sobre isso depois que eu morrer: vinho que curto mesmo é esse. Veja o gosto, parece que foi armazenado em barricas bodalesas de carvalho francês. Tem aroma potente, com algo de alcaçuz, de bala de café e de coco. É equilibrado, elegante e aveludado na boca. Guarda um retrogosto de primeira. E o fato de ser um pouco tânico, ligeiramente adstringente, não lhe tira a nobreza.

Abismado, guardei o segredo durante anos. E agora que o famoso enólogo morreu cumpro a promessa que lhe fiz. Porém não sei se alguém vai acreditar…

         Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular.

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