De Niro não é um animal

O europeu Passos Coelho queixou-se há tempos de um murro no estômago. Com um murro em cheio na cara começa a história de Jake la Motta, em Raging Bull (*). O filme é desse nervoso genial e miudinho chamado Scorsese. O actor é o Robert De Niro dos tempos do Olimpo: escorre-lhe sangue da sobrancelha esquerda e os punhos do adversário esmagam-lhe o nariz, os maxilares. Dói-lhe a ele e dói aos espectadores. La Motta é um pugilista imbatível apesar das mãozinhas de menina. Mas os gloriosos dias de vitória parecem chegados ao fim.

Campeão, sexo ansioso com a linda Vickie que lhe enche de beijinhos os dói-dóis após os combates, De Niro nem precisa que ninguém o vença. Derrota-se a si mesmo. O peso – o que ele engorda! – é o seu deficit. A desgraça vem numa enxurrada e leva-lhe casa, mulher, a vã glória e a dignidade.

No fim, dois polícias mal-cheirosos atiram com De Niro para uma solitária infecta. Solta um urro visceral, bate com a cabeça nas paredes, soca o cimento com um directo da esquerda, um masoquista gancho da direita. Porquê, porquê, porquê, urra ele, concluindo com a mais desmaiada denegação: “Não sou um animal”. Se De Niro não é um animal, porque havemos nós de ser um pig?

A Europa é uma velha senhora lívida. Viveu a cores. Desde que vive a preto e branco, admiradores e amantes desertaram-na. Restamos nós, os pigs, reféns do excruciante amor dela.  Aconteceu o mesmo a William Holden, jovem amante de Sunset Boulevard (*). Gloria Swanson, velha e rica actriz do passado, paga-lhe tudo, camisas, botões de punho, sobretudo de pêlo de camelo, cigarreira de ouro maciço, fraque para a meia-noite de cada fim de ano. Camisas! Seis dúzias de camisas!

Sunset começa e já Holden está morto: flutua de bruços na piscina com que sonhou. Teve-a. A um preço que nunca poderia pagar, como confessa, morto, com voz de morto, na mansão de tectos trabalhados que, pasme-se, foram mandados vir de Portugal.

De bons estucadores e marceneiros a pigs, já não fugimos do quarto das traseiras em que nos meteu a Europa. Às vezes, a velha senhora passeia-nos de limusina. E agora reparo que Durão Barroso tem uns ares do Rod Steiger de On the Waterfront (*). No banco de trás, Steiger, pistola na mão, oferece ao irmão emprego sinistro, com advertência sinistra: “Não fazes nada, não dizes nada; aceita e não faças perguntas.” E Barroso, quem é que ele, no banco de trás, não ouviu já – ontem Sócrates, hoje Passos Coelho, enfim Portugal – clamar, com a voz de loser de Marlon Brando: “Não estás a compreender. Eu podia ter tido classe, ser um vencedor. Podia ter sido alguém e não um vadio!”

Estes são os que perdem, os losers. Há um dia, ou noite, em que se falha e é o bilhete para o inferno. Não perco a fé: mesmo no inferno hão-de projectar um, pelo menos um, filme redentor.

 Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

 

* Raging Bull: no Brasil, Touro Indomável.

Sunset Boulevard: no Brasil, Crepúsculo dos Deuses.

On the Waterfront: no Brasil, Sindicato de Ladrões.

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