me escondo na toca mais escura,
cavo meus túneis protetores,
abro janelas camufladas
e espreito aqueles
que se dizem homens.
não quero esse convívio cansativo.
a eles não agradam meus demônios.
a mim não apetecem suas gaiolas.
. . . . . . . . . . . . . .
já apaguei a luz de meu quarto.
visitantes noturnos serão,
agora,
confundidos com ladrões.
silêncio.
quero tão só dormir um pouco.
. . . . . . . . . . . . . .
não consigo dormir. canto em pensamento uma melodia de Schumann.
Schumann transforma minha cabeça numa oficina de ruídos. Schumann morreu louco. eu sei que segurarei minha loucura na ponta de uma caneta. presa numa parede escrita. misturada a palavras de livros que são vomitados, defecados, mijados, esporrados aos pouquinhos. misturada ao cimento de uma casa que levantei. ou de outra casa que eu venha a levantar.
. . . . . . . . . . . . . .
ovelhas do Tempo,
brancas, negras, malhadas,
a quem eu conduzo aflito,
pra que cheguemos um dia
ao redil do silêncio!
por que vão tão apressadas?
por que vão tão tresloucadas?
eu me pergunto
no meio dessa corrida cruel:
sou eu que conduzo vocês ao meu fim?
ou dar-se-ia que são vocês que me arrastam?
. . . . . . . . . . . . . .
lembrando de uma frase de uma canção de Silvio Rodríguez.
a gente foi-se juntando aos poucos;
peludos, grunhidos selvagens.
entre berros e pauladas
fomos entendendo o poder da união.
como num milagre
pequenos grupos se organizaram
(que passo para o humano!).
custou-nos apenas pequena transcendência
y un poco de muerte.
depois
os reis hoje antigos
focalizaram sobre si decisões e posses,
distribuindo dores e sobras
para o resto das multidões cabisbaixas.
sacerdotes ensinavam como crescer
(que passo para o humano!),
navios, medicina, escrita.
custou-nos apenas alguma obediência
y un poco de muerte.
depois,
ah! foi com os gregos que o humano
divinizou-se!
o teatro, a história, a filosofia!
a arquitetura e a estatuária!
que soberbo povo enfeitiçado
por verdade e beleza!
custou-nos tão pouco, afinal!
só deflorar a poesia
(que passo para o humano!)
y un poco de muerte.
e o que nos ensinaram os romanos?
ensinaram a organizar o grandioso.
como explicar tanta civilização?,
sem a repressão eficiente do Direito!
(que passo! que passo!)
tábuas legisladoras saindo por todos os caminhos,
y un poco de muerte.
chegaram-se de manso
os cristãos
com tanta doçura
y un poco de muerte.
os sábios libertaram a ciência, a seguir,
transformando, numa vertigem voraz,
a face das coisas do homem.
custou-nos transformadora renovação renascentista
y un poco de muerte.
mas eis que a máquina estala em línguas de fogo que ligam
e em garras de ferro que se engrenam corretamente!
foi uma revolução poderosa, aquela,
(mas que passo para o humano!
que grande passo de magia mecânica!)
é verdade que as chaminés cospem venenos
mas é tão grande o planeta!
e quão confortável, o resultado dos gritos das máquinas!
foi só organizar os trabalhadores
y un poco de muerte.
e hoje, hoje, finalmente,
nós que nos dizemos civilizados,
nós capitalistas, nós socialistas,
e nós nem istas nem aquilo,
continuamos nossa gloriosa trajetória
em direção ao nada.
atraindo futuros ao um só passado.
pisamos a lua, que passo desumano!
enchemos o espaço com vigias explosivos,
como é pequeno o planeta!
mas continuamos a marcha de esplendor,
pisando rastilhos, passeando sobre minas, brincando sobre explosivos.
defendendo essas idéias que garantem a civilização
com verdades discutíveis, discutidas, indiscutíveis,
y un poco de muerte.
. . . . . . . . . . . . . .
ésquilo,
no teu silêncio de pedra
você ouve falar das atrocidades?
. . . . . . . . . . . . . .
quando choro
fico livre
do meu choro.
. . . . . . . . . . . . . .
o primeiro deus disse ao primeiro homem:
dou a você esta floresta com este rio e esta chuva e estes filhos
e em troca
seja feliz.
o segundo deus disse ao segundo homem:
dou a você o poder absoluto sobre todas as gentes
e em troca
louve-me.
o último deus refugiou-se apavorado
nos espaços interatômicos.
silêncio, coração!
quantos séculos-luz esperaremos
no útero de toda essa morte
a próxima divindade?
. . . . . . . . . . . . . .
quem bota fogo no meu corpo
ilumina minha alma.
. . . . . . . . . . . . . .
só dois tipos de livros bons existem.
os que matam minha sede
e os que criam em mim um novo tipo de sede.
o resto é cocô.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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