na manhã seguinte, durante o café:
vovô, o diabo existe?
existe. diabo é o nome da burrice humana.
e ainda se queima pessoas por causa da religião?
claro! o Poder sempre queima vivas as pessoas. há muitas maneiras de fazer isto. deixá-las sem justiça. proibi-las de mostrar o rosto. exibi-las peladas na TV. mas a pior delas é mantê-las na burrice.
meu pai saiu logo após o café. e, no portão, ele me falou:
pior do que as múltiplas facetas das revelações, pior do que isso é essa mania de todos eles se dizerem o povo escolhido. isto é de uma infantilidade sem limites. toda criança pensa isto, eu sou o preferido de meus pais, e de certa forma está certa. as crias dos animais superiores poderiam dizer a mesma coisa, é uma questão de proteção à espécie. mas daí a fazer com que um povo inteiro seja o filhinho de seu papai e, pra isso, é claro!, o seu papaizão tem que ser o único verdadeiro, ah!, cresçam e apareçam, monoteístas presumidos, vaidosos e imaturos. até mais, filho, não gostaria de falar mais sobre estas coisas.
crianças chegaram a seguir. espalharam-se. peguei meus papéis para algumas anotações.
parou um carro diante do portão. já sei quem é. abri o portão, entraram o ex-aluno de meu pai e seu filho adolescente.
o seu filho não está?, perguntou o rapazinho.
está na cascata com uns amigos.
ele tem aula de tarde?
está mudando de escola e agora só em fevereiro. esse semestre ele está comigo.
e ele: pai, vou descer.
não demore muito.
e enquanto esquento a água pro café:
estou sem graça com teu pai, nem sei como apresentar o fato a ele.
ele não está. mas já sabia o que ia acontecer.
como assim?
ele me disse que vocês provavelmente não publicariam o texto dele.
como ele sabia? foi estranho, todo mundo que leu achou interessante mas sempre falava: não era bem isto que a gente queria. o professor não vai ficar chateado?
acho que não. conversamos sobre isto. estava esperando. ele disse pra mim: imprensa é imprensa.
o que quis dizer?
ele fez o seguinte comentário: todos têm o seu limite. os pais e professores do jornalzinho estão comprometidos com todos os pais e professores. o mesmo se dá com a imprensa geral. certos compromissos são mais fortes que a liberdade. há ideologias. vamos imaginar que um candidato à presidência de um país seja usuário de cocaína. é claro que os jornais sabem disto.
quer que eu te conte uma história? tenho um amigo que trabalha num dos maiores jornais do país, se não o maior. e ele me disse que esse fato aconteceu, o do candidato tal que fazia uso da cocaína. os diretores tinham em mãos um dossiê. por que eles não publicaram o dossiê às vésperas da eleição? há compromissos, resta saber com quem. meu pai diz que os jornais e os outros meios de comunicação não passam de meros espaços para caríssimas propagandas.
fico mais sem graça ainda. acho que vou lá embaixo.
tome antes um café.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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