A Espécie Humana. Capítulo 36

meu filhinho como que está só em presença da morte. Isaías falou e Pedro repetiu, séculos depois:

toda a carne é erva

e todo o seu encanto é uma florzinha campestre;

seca a erva, murcha a flor.

e foram essas as palavras, entre outras, que Brahms musicou.

tons graves e um ritmo pesado dão início a uma linda melodia. vejo uma fumaça tênue saindo de uma pira ao longe.

denn alles Fleisch es ist wie Gras

und alle Herrlichkeit des Menschen wie des Grases Blumen.

surgem as primeiras nuances de vermelho-chama e a fumaça se enegrece de súbito.

das Gras ist verdorret und die Blume abgefallen.

trompas anunciam, não o juízo, mas as cinzas de um serzinho que veio ao mundo apenas para ser feliz e gerar outros serezinhos mas eis que por cilada do destino este destininho não se cumpriu.

e após a explosão dos tímpanos indicando que não há perdão e a morte não volta atrás o fogo aumenta e um terrível cheiro de carne queimada e toda a carne é erva e o seu encanto é uma florzinha campestre meu filho não consegue ficar lá este cheiro este cheiro eu o tomo no colo e ele não chora e seca a erva e murcha a flor nós nos abraçamos e eu penso com alívio que o cheiro é de uma triste cachorrinha morta e felizmente não é de um ser humano quem sabe um judeu ou um estudioso de filosofia denn alles Fleisch agora com o tutti orquestral toda a carne é erva e eu é que me vejo chorando mas não choro pela morte choro pela vida choro porque a música me faz chorar.

meu pai ficou parado, ainda de costas para mim, olhando a fogueira que diminuía. quantas e quantas vidas além das gentes e bois e jumentos e ovelhas e camelos, enumeradas todas num livro do destino que não existe e os outros bichos maiores e menores e coisinhas que se movem e quase não se poderia chamar a isso de vida mas é vida, sim, como não? então alguém seria capaz de criar isto? e para todas estas vidinhas, breves, umas, demoradas, outras, para todas elas, há o momento, inexorável, em que flutua e paira e desce a coroa do grande silêncio.

o réquiem alemão continuou e ainda com o menino no colo eu troquei o lado do disco. a seguir descemos para a cascata. sentamo-nos e em silêncio ficamos. meu pai chegou bem depois, com os olhos vermelhos, como pode ser isto?, eu pensei. eu não entendia o que ele queria me dizer com seus olhares. os cães se chegaram. olhei para Luluva e percebi que também ela não devia entender o meu olhar.

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Leia o capítulo anterior.

Para ler a partir do capítulo O.

Continua na semana que vem.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *