não gostaria de viver novamente aquela manhã. não podemos escolher: atendemos ao telefone e alguém nos dá a notícia; abrimos a porta e nos deparamos com a notícia; recebemos o telegrama ou a carta e ei-la, a notícia. a coroa do silêncio.
após descer a escada, brinquei rapidamente com os cães. percebi que Luluva me olhava de longe, com olhos parados, não abanava o rabo. olhei em direção ao fogão e ali estava a notícia: Kamala jazia morta. esticada, já fria, tão pequenina… fechei os olhos e vi Lear, quase chorando, tendo Cordélia ao colo: passarinhos cantam lá fora, insetos voam e rastejam mas Kamala está fria e seu coraçãozinho silenciou.
como vou dizer isto ao menino?
não gostaria de viver novamente aquela manhã.
todos os meninos, um dia, perdem um bichinho querido!, falei baixinho, enquanto abraçava, com a maior suavidade possível, seu corpo trêmulo que soluçava abafado.
eu não sou todos os meninos, pai. eu sou eu.
silenciei. o homem põe os pés na lua mas não encontra palavras de consolação diante da morte. repete as vazias fórmulas que não ousarei repetir… sabia que meu abraço não consolava, apenas segurava-o um pouquinho do lado de cá.
quanto a mim, sim, eu tinha molhados os olhos mas não chorava. algumas lágrimas vieram apenas para me lembrar de mortes anteriores, animais queridos, sim, e por que não?, e gentes, e quantas e quantas!, eu era também um daqueles tantos meninos a quem morreram bichinhos queridos. tudo que me cabia era suavizar os tremores do corpinho que soluçava.
meu pai não estava ali, é claro; ao perceber o que tinha acontecido, desapareceu por completo.
depois de uma espécie de sono letárgico em que os soluços foram aos poucos diminuindo, o menino falou:
cadê o vô?, pai.
deve estar lá fora.
vou falar com ele. ela pode ficar aqui mais um pouco?
sim. vou enrolá-la num paninho.
saiu. pela janela vi os dois agachados, conversando, um em frente ao outro, meu pai de costas para mim.
ao entrarem, muito tempo depois, percebi o terrível e frio olhar com que meu pai me fulminou. ele mesmo notou que exagerara e me abraçou:
desculpa, filho!
não está sendo fácil!
nós combinamos, eu e ele, que vamos cremá-la. combinamos também uma música bem alta, com as caixas do lado de fora. a escolha da música é sua, claro!
e saiu.
os dois organizaram tudo, meu pai entrava e saía. os cães também iam e vinham mas Luluva continuava silenciosa e permanecia ao meu lado.
finalmente, o menino entrou.
pai, só falta o fósforo.
quer que eu te ajude?
não! cuide da música. o vô está comigo. com a voz embargada e os olhos molhados.
me dê um abraço!
levantei-o no colo e o beijei na testa. escolhi uma música bonita, falei.
abraçamo-nos forte.
vai.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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