vovô!, quantas crianças?, onde?, com que bichos?, por quê?, e o que aconteceu com todas?
calma!
é noite. estamos deitados e os lampiões já foram apagados. dentro desse aconchegante silêncio, soa a voz de meu pai, pausada, suave, como se viesse de um mundo além do imaginado.
antes de falar de crianças que foram criadas por animais, preciso falar de crianças que são criadas sem a presença de adultos. de vez em quando os jornais falam de crianças que são encontradas após um longo cativeiro num cômodo, isoladas, recebendo apenas uma parcela de alimento. o caso mais famoso é o do jovem Gaspard Hauser, Alemanha. este livro que acabei de ler fala de coisas que nunca vi em outros livros sobre o mesmo assunto. mas… vamos lá. Gaspard Hauser apareceu na cidade quando tinha uns quatorze anos. mal sabia andar, repetia a mesma frase, sem muito sentido, dizia que queria ser cavaleiro. estivera preso pelo menos mais de dez anos, vivia sentado no chão, comeu somente pão e água, que alguém lhe passava por um buraco. o senhor que se propôs a reeducá-lo tinha, entre outros filhos, uma menina de seis anos e junto dela Gaspard Hauser aprendeu depressa uma porção de coisas. Infelizmente poucos anos depois ele foi assassinado, quem sabe porque, suspeitou-se mais tarde, seria herdeiro de uma coroa. vamos ver algumas curiosidades sobre Gaspard Hauser. ele percebia a presença de metais. perdeu esta capacidade quando passou a comer carne. uma noite, vendo o céu cheio de estrelas, começou a chorar de emoção, dizendo: são todas coloridas! por que me impediram de ver isto? quando participava de uma reunião social, à despedida ele se lembrava dos nomes de todos os visitantes. sobre o problema dos metais, cujo magnetismo ele percebia, e da cor das estrelas, convém falar de uma noção chamada consciência orgânica. nosso corpo perceberia coisas como um animal, capacidade que diminui e quase sempre desaparece, com o uso da razão.
se a gente não pensar, a gente descobre ouro?, vovô.
o que se pode responder? há pessoas que descobrem água e outras adivinham o futuro. o único que sei é que geralmente são pessoas que não fazem muito uso do raciocínio. posso estar enganado.
e os bichos?, vovô.
não está com sono?
claro que não. agora é que vem o melhor.
pois bem. quando a gente pensa em um ser humano criado por animais, sempre vem à mente o Tarzan. Tarzan é um herói inventado de uma série de romances de um escritor americano. Tarzan junta as habilidades do homem com as habilidades dos animais. forte, destemido, incansável como uma fera, além do quê, se comunica com elas. inteligente e justiceiro como um ser humano muito especial. o Tarzan do gibi até fala latim. num resumo, fantasia das mais extremadas. há casos reais de crianças criadas por animais mas o desfecho é sempre trágico.
vovô, como podem ter certeza de que foram criadas mesmo pelos bichos?
vou contar duas histórias:
em 1920, um reverendo europeu estava na Índia e pelos habitantes da aldeia soube de duas criaturas esquisitas que viviam com os lobos. foi com eles até a gruta e viram três lobos e dois bichos estranhos. o reverendo percebeu que eram crianças. estavam de quatro, imundas e com os cabelos desgrenhados e duros. os indianos quiseram matar a todos mas ele não deixou. um tempo depois e ele voltou lá com outras pessoas. ao se aproximarem, dois lobos fugiram. mataram a loba a flechadas e entraram na gruta. as duas crianças estavam no fundo mais escuro. eram duas meninas, mais ou menos de dois e oito anos. assustadas e agressivas. eles as levaram à aldeia. o reverendo precisou viajar e quando voltou, uma semana depois, encontrou as meninas abandonadas num cercado para bichos, quase mortas de fome. os aldeões tinham ficado com medo delas.
ele, então, começou a educá-las. no princípio só andavam de quatro. nunca conseguiram falar. a menor morreu um ano depois. a mais velha cresceu como uma pessoa retardada. carregar um balde e trazê-lo com água, por exemplo, era pra ela uma coisa difícil e isto foi o máximo que conseguiu aprender. essa menina se chamava Kamala.
como foi que a loba as levou? por que as duas tinham idades tão diferentes?
ninguém sabe. teriam sido abandonadas ou roubadas pelos animais? primeiro uma e depois a outra? ninguém sabe.
que animais criaram outras crianças?
entre crianças criadas isoladas, crianças que crescem sozinhas e que vivem com animais, há cinqüenta e poucos casos. os animais são: lobos, ursos, uma gazela, um macaco, uma pantera, um porco, leopardos…
uau!
mas nem todos os casos foram comprovados. algumas vezes surgia um boato, alguém escrevia o relato, sem nunca ter visto nada. há no entanto um caso muito terrível, de tão assustador.
conta!, vô, conta!
de novo na Índia. os homens de uma aldeia em Silchar, ou Cachar, mataram os filhotes de uma leoparda. a fera ficou rondando a aldeia. alguns dias depois estava uma mulher colhendo arroz e junto dela o seu bebê dormindo. diante dos olhos da mãe, a leoparda roubou o bebê e desapareceu. a mulher com certeza pensou que a fera teria devorado a criança. três anos mais tarde, foi encontrada uma criança selvagem, uma menina. estava quase cega, os joelhos e as mãos engrossados por calos. caçava as galinhas e comia a carne crua. se alguém tentasse pegá-la, ela se debatia e mordia com violência. a família da criança roubada pela leoparda reconheceu-a e a recolheu. o relato dessa história diz apenas que esta conseguiu manter-se de pé. não sabemos se chegou a falar.
mas como ela mamava na leoparda?
você não me contou que um dia a Luluva roubou o filhotinho da Babushka e o ficou lambendo e ele mamava no seu peito sem leite? deve ter acontecido o mesmo. a leoparda lambeu o bebê junto à sua barriga e o bebê começou a mamar. lembra que te contei dos bebês soterrados no terremoto que sobrevivem porque bebem a água que está no chão onde eles ficaram presos?
vovô.
e após um longo silêncio:
olha só o Tarzan e a Kamala. na vida real tudo acontece diferente das histórias inventadas, não é?
quase sempre, mas não sempre. algumas vezes o contador inventa uma história como se ela tivesse acontecido de verdade.
qual é a graça?
a vida está cheia de passagens bonitas. e a gente sempre aprende.
e dessas crianças, o quê que a gente aprende? no começo pensei que seriam histórias divertidas. agora, veja: elas não tomam banho quente, não comem doce, não têm cobertor, não aprendem a falar. pai, você já dormiu?
claro que não! estou ouvindo.
então diga: o que temos de aprender dessas histórias?
então digo: o homem, o ser humano, é apenas aquilo que aprende.
então, se a gente não aprende a gente fica, como você às vezes diz brincando, nel mezzo del cammin?
sim. veja, os jovens que roubam e matam. eles não aprenderam que a outra pessoa é tão importante quanto eles.
e isso é tudo que a gente tem que aprender?
vamos deixar isto pra outro dia?
está bem. hoje não quero música pra dormir, pai.
está tudo bem?
mais ou menos. témanhã, pai. témanhã, vô.
témanhã, filho. témanhã, pai.
até amanhã, crianças.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
2 Comentários para “A Espécie Humana. Capítulo 27”