Quando são extremamente jovens, as pessoas admiram nos outros, antes de mais nada e sobretudo, a beleza. Mais tarde, o principal valor passa a ser a inteligência. Só depois, com a maturidade, passa-se a admirar, a valorizar a bondade.
Fiquei conhecendo essa noção preciosa muito cedo, adolescente, através de uma amiga que me ensinou muito, Vivina. Mas depois aprendi que simplesmente saber da existência de uma noção é muito diferente do que na realidade compreendê-la, vivenciá-la.
A primeira coisa que me atraiu em Suely foi sua beleza. Éramos jovens demais – e, credo, como ela era bela. Foi só pouco depois que passei a respeitar sua inteligência clara, forte, lúcida. Mas precisei chegar à maturidade para de fato reconhecer o quanto ela era uma boa pessoa. Uma boa, uma grande, uma extraordinária pessoa, generosa, paciente, agregadora, nada egoísta, dedicada aos outros. Conheci poucas pessoas como ela. E tenho a certeza de que não poderia haver elogio maior a alguém. Se houvesse, eu o faria com o maior bom grado.
Como eu, não era uma pessoa religiosa. Mas acho que, mesmo sem professar a fé, mesmo sem saber, no fundo era uma budista. Digo isso porque cada vez mais admiro os budistas, como Inês, como Aglaia, como Rita Amorim. Nesta época de pessoas cada vez mais egocêntricas, desiludidas e cínicas, seguia, como poucos, o ensinamento cristão de amar aos outros como a si mesma – não porque fosse uma ordem, mas porque ela era assim.
Certamente por isso, por ser profundamente boa, era uma agregadora. As pessoas circulavam em volta dela, reuniam-se em torno dela. Sempre foi assim, desde que ela era muito nova, mas isso só foi se acentuando à medida em que os anos passavam.
Há dois tipos de pessoas agregadoras, acho: as que têm poder e/ou dinheiro, o que é mais ou menos a mesma coisa, e as que são especiais. Suely nunca teve muito dinheiro, e o poder que tinha era este: o de chamar as pessoas para perto dela, o de conquistar e manter amigos, o de fazer os amigos felizes.
A casa dela (fosse qual fosse, estivesse morando com um marido, com outro, com nenhum) sempre estava cheia de gente – parentes, amigos, conhecidos, amigos dos outros. Atraía as pessoas para perto dela. As pessoas gostavam da companhia dela, de estar perto dela.
Não existe muita gente assim.
Se tivesse podido viver até ficar velha, até os 70, os 80, tenho a certeza de que continuaria exatamente assim. Seria uma grande matriarca, gente de idades e formação as mais diferentes circulando em torno dela. Como sempre foi até aqui.
Apesar de conhecê-la há mais de 40 anos, fiquei bastante surpreso com a quantidade de gente que foi prestar as últimas homenagens a ela. A quantidade e a variedade. Amigas do tempo do ginásio, amigos da História da USP, colegas de magistério, amigos de todas as épocas, amigos dos filhos – Fernanda, Gabriel, Lucas, que ela amava como poucas mães amaram –, às pencas, pouquíssimas horas decorridas entre a morte e o velório breve.
Nestes tempos de intolerância cada vez mais à flor da pele, fico pensando que essas características, a bondade, a generosidade, têm a ver com conciliação – e Suely sempre foi uma conciliadora, desde o tempo em que nós, da nossa geração, fazíamos da contestação uma meta, uma profissão de fé. Me lembro bem que, nos primeiros tempos do namoro, quando ela estava com 17, 18 anos, Sandra, a irmã um ano e pouco mais nova, era a rebelde, a que enfrentava de peito aberto o pai, Seu Antenor, uma figuraça, mas, como mandava a cartilha do tempo e espaço, machista, dominador, um pequeno ditador no lar, à maneira italiana de sua origem; Suely, ao contrário, procurava contemporizar, conciliar; se a conciliação franca não fosse possível, então optava pela via pacífica de ir em frente com doçura, jeitinho e – por que não? – alguma dissimulação. Desgastou-se menos.
Talvez tenha sido conciliadora até demais, ao longo da vida. Nunca me cobrou muito – na verdade, nunca me cobrou – pelo fato de eu ter sugerido a decisão errada quando, fazendo o curso de História e trabalhando no Banco do Brasil, emprego excelente, cobiçado, naquela época só conquistado por quem ralasse muito no estudo e passasse no concurso difícil, ficou grávida, e teve que optar por abrir mão de uma das três tarefas, o estudo, o trabalho e ser mãe. Bem intencionado, mas seguramente confiante demais, seguro demais – esses males da juventude –, argumentei que o emprego estável era menos importante que a formação acadêmica. Não demoramos muito para verificar na prática que o diploma da USP é uma bela conquista, mas é bem mais falho na hora de pagar as contas.
Talvez tenha sido conciliadora demais em outras situações que vieram depois. Não me cabe julgar; foi a opção dela.
Não é possível, não cabe ter arrependimento por eu ter saído de casa, Suely sem emprego e com uma criança de pouco mais de um ano para cuidar. Mas um dos erros pelos quais mais me cobro na vida foi ter feito com que ela perdesse o salário bom e vitalício.
Ela, no entanto, apesar da grana sempre curta, nunca reclamou por causa daquela decisão. As boas pessoas, as pessoas especiais – venho aprendendo isso ao longo da vida já longa – não reclamam muito.
Não era de reclamar. Seguia em frente. Sorria a maior parte do tempo, cercada de amigos que a admiravam, que tinham prazer na sua companhia.
Enfrentou muitas barras pesadas – não faltaram barras pesadas em sua vida. Enfrentou-as com alguma resignação e muita, muita força. Uma força admirável, de fazer babar.
Enfrentou a doença, a maior parte do tempo, ou no mínimo boa parte do tempo, com essa força gigantesca, essa força que me deixa pasmo, tonto, aparvalhado. Mesmo já quase no fim, era capaz de sorrir. Só nos últimos dos últimos dias, quando já não dava mesmo mais, quando já não era possível, demonstrou incômodo, desagrado, cansaço.
Fernanda me disse, pouco tempo atrás, que tudo agora para mim vira texto. Era uma constatação, com carinho, quase com algum orgulho, eu acho, embora na hora não tenha conseguido deixar de entender a frase como um alerta, uma reprimenda.
O fato é que percebi como era verdadeira a frase da minha filha quando me bateu claro que estávamos perdendo Suely. Quis registrar uma homenagem a ela – mesmo que num texto ruim, mesmo que turvado pela emoção, mesmo que babaca.
Não sei se consegui deixar absolutamente claro para Suely, enquanto podia – e a gente deveria sempre se arrepender pelo que fez, e não pelo que deixou de fazer, como aprendi, também jovem demais, com Fernando Sabino – o quanto eu a amava, o quanto eu a admirava. E o quanto sou grato a Deus (aos deuses, a todos os santos, ao destino, ao acaso) por ter sido ela a mãe de minha filha.
18 de junho de 2010
Um PSzinho: gostei da brincadeira que minha cunhada Marina fez com Fernanda – “Agora a Suely vai se encontrar com Regina e as duas vão ficar falando mal do seu pai”. Sim, sim, vão. E vão as duas ficar com pena de Mary, que tem que me agüentar.
A foto de 1973 é de minha autoria, modéstia à parte. A foto acima, de 2007, é de Eliana Lourenço Rodrigues.
Sergio,
Muito lindo e muito verdadeiro este texto! Não consigo deixar de pensar que a Fê tem muito da Suely dentro dela e como tenho sorte de tê-la como grande amiga.
Beijos,
Caki
Servaz,
você me fez chorar. Chorar de pena por não ter conhecido a Suely. Chorar pela orfandade da Fernanda que você, tenho certeza, agora, vai tentar diminuir. Chorar pelo teu coração, tão masculino e pela tua alma, tão feminina. Você entende o que eu digo. Grandes beijos, AMIGO.
Que coisa bonita o seu texto, Sérgio! Que imenso amor! É claro que a Suely sabe, sim. Se não sabia, tá sabendo agora.
Força, o abraço,
Sonia
“Bem aventuradas sejam as pessoas de belo texto”. Escolho suas palavras para dizer o que sinto ao ler o que você escreve: deleite, identificação, admiração. conheci seu site casualmente procurando críticas sobre o mais que maravilhoso filme “Matar ou Morrer”, e eis que sou apresentada a um dos vários belos textos que você escreveu. Pronto, foi o começo de uma curiosidade que sei, vai permanecer comigo de agora em diante. Temos gostos parecidos e opiniões bastante semelhantes sobre o que nos é mais importante na vida: o amor, a amizade, o cinema, a música, a literatura (nem adianta dizer que leu pouca poesia – suas citações lhe traem:)). Continuando, convicções políticas, uma boa cerveja gelada cercados de amigos e um bom papo. A lista é grande, mas paro por aqui. Enfim, dizem que alguns amigos são mais chegados que um irmão. Arrisco dizer que alguns textos na internet são mais chegados que alguns amigos. Obrigada por suas belas palavras, por fazer meu coração bater forte ao lê-las, por preencher bem minhas poucas horas vagas. Acima de tudo, parabéns por essa mais que emocionante crônica. Não conheci Suely, mas sinto que ela sorriu ao lê-la.
Olá,Sérgio.Trabalhei com Suely no Banco do Brasil nos idos de 1977, na Rua Líbero Badaró. Descobri por acaso o seu belo texto.
Que bom que ela tenha encontrado e convivido
com seres humanos tão especiais.
Um abraço.